Que o amigo seja para vós a festa da terra

31 março 2007

Deserto em nós














Marrocos 2002

... hoje, paisagem, acho-te selvagem,
vejo-te deserta, solitária e desolada.
então disse à minha alma: guarda-me lágrimas!
e, para onde olhasse, via-as chorar juntas.

Ibn Sâhib Al-Sâlâ, Beja, séc. XII

Xvarnah no Grammateion

Iacobeia cantar

Da musa venha discurso
Fluido d'oralidade,
Correndo a literatura
A ser em pleno.

D'ondas faça recurso
Emboida vitalidade,
Metendo a mesura
Na boca de Sileno.

As memórias das letras
São falsas memórias,
Nem lapis, nem canetas,
Sabem contar histórias.

Do som vem o sentido
Sentindo bem Brómio,
Nem visto, nem escondido,
Anjo mente demónio.

Devenha o seu uso
Em viva liberdade,
Lóxias na lonjura
Da Pítia p'lo treno.

Desfaça-se o abuso
E venha a verdade,
Ó Febo da iluminura
Sai já do terreno.

Ó distante cruel
As setas são d'amar,
Fica no teu papel
E deixa dançar.

Que do fiel cão
Astuto caçador seu,
Quem dança bem são
É o sábio Zagreu.

E as portas devagar
Já se abrem pró céu,
Começando a largar
Por cima do véu.

E tu musa, canta
O Zagreu disperto,
Se o Apolo espanta
O caminho é certo.


Publicado a 23 de Março de 2007 no Odeio o Mundo Agora!

Aurora



Aurora Australis




















Fotografia da NASA

O que jaz além?








2005



Meu coração semelhante Outono lua


Verde lago brilhante imaculado puro


Não haver aí ser poder comparação


Ensinar me como dizer




Meu coração lua de Outono
Verde lago brilhante imaculado puro

Não pode haver comparação
Ensina-me a dizê-lo


Han-Shan, O vagabundo do Dharma, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2003.

Caligrafia de Li Kowk-Wing
Tradução do Chinês de Jacques Pimpaneau
Versão poética de Ana Hatherly

26 março 2007

Do conceito











Wikipedia













"(...) quanto mais a filosofia esbarra com rivais despudorados e tolos, quanto mais os encontra no seu próprio seio, maior é o seu entusiasmo em cumprir a tarefa, criar conceitos, que são aerólitos mais do que mercadorias. Solta gargalhadas incontroláveis que lhe secam as lágrimas. Assim, pois, a questão da filosofia é o ponto singular em que o conceito e a criação se relacionam entre si.

Os filósofos não se ocuparam suficientemente da natureza do conceito como realidade filosófica. Preferiram considerá-lo como um dado conhecimento ou uma dada representação, que se explicariam por faculdades capazes de o formar (abstracção ou generalização) ou de o utilizar (juízo). Mas o conceito não é dado, é criado, tem de ser criado; não está formado, ele põe-se a si próprio, auto-posicionamento. As duas coisas implicam-se, porque aquilo que é verdadeiramente criado, desde o ser vivo à obra de arte, goza por isso mesmo de uma autoposição de si, ou de um carácter autopoiético graças ao qual é reconhecível. Quanto mais o conceito é criado, mais ele se põe. O que depende de uma livre actividade criativa é também o que se põe a si próprio, independente e necessariamente: o mais subjectivo será o mais objectivo. Foram os pós-kantianos que prestaram maior atenção neste sentido ao conceito como realidade filosófica, nomeadamente Schelling e Hegel. Hegel definiu poderosamente o conceito pelas figuras da sua criação e pelos momentos da sua autoposição: as figuras tornaram-se pertença do conceito, porque constituem o lado sob o qual o conceito é criado pela e na consciência, através da sucessão dos espíritos, enquanto os momentos edificam o outro lado segundo o qual o conceito se põe a si próprio e reúne os espíritos no absoluto de si. Hegel mostrava assim que o conceito nada tem a ver com uma ideia geral ou abstracta, nem com uma Sabedoria incriada que não dependesse da própria filosofia. Mas fazia-o à custa de uma extensão indeterminada da filosofia que quase não deixava subsistir o movimento independente das ciências e das artes, porque reconstituía universais com os seus próprios momentos e tratava apenas como figurantes fantasmas as personagens da sua criação. Os pós-kantianos andavam à volta de uma enciclopédia universal do conceito, que remetia a criação deste para uma pura subjectividade, em vez de se dedicarem a uma tarefa mais modesta, uma pedagogia do conceito, que tivesse de analisar as condições de criação como factores de momentos que permaneciam singulares*. Se as três idades do conceito são a enciclopédia, a pedagogia e a formação profissional comercial, só a segunda nos pode impedir de cair nos píncaros da primeira até ao desastre absoluto da terceira, desastre absoluto para o pensamento, sejam quais forem evidentemente os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal."


* Sob uma forma intencionalmente escolar, Frédéric Cossutta propôs uma pedagogia do conceito muito interessante: Élements pour la lecture des textes philosophiques, Ed. Bordas.

Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia?, Lisboa, Presença, 1992.
Desenhos gerados por computador no Webesites as Graphs


25 março 2007

Skiagraphia
























Virga
James Turrell, 1976. Da série Veils.
Luz natural e luz fluorescente, 373,4 x 447 x 937,3 cm.
Colecção Panza. Guggenheim Museum, Nova York, em
empréstimo permentente ao Fondo per l'Ambiente Italiano.
Vila Panza, Varese, Itália.













(...)
Concentra-te somente na acção
e jamais nos seus frutos: não permitas
que os frutos da acção sejam teu móbil
nem causa de ficar só inactivo.
(...)
Quando teu intelecto atravessar
densa floresta d'ilusão confusa,
então, tu deixarás de querer saber
do que foi ensinado e há para ensinar.
(...)

Segunda lição, 47 e 52
Vyassa, Bhagavad-Guitá, trad. António Barahona, Lisboa, Relógio d'Água, 1996.

23 março 2007

Do céu trouxe alegria







2006

Wie wenn am feiertage…

Wie wenn am feiertage, das Feld zu sehn
Ein Landmann geht, des Morgens, wenn
Aus heißer Nacht die Kühlenden Blitze fielen
Die ganze Zeit und fern noch tönet der Donner,
In sein Gestade wieder tritt der Strom,
Und frisch der Boden grünt
Und von des Himmels erfreuendem Regen
Der Weinstock trauft und glänzend
In stiller Sonne stehn die Bäume des Haines:

So stehn sie unter günstiger Witterung
Sie die kein Meister allein, die wunderbar
Allgegenwärtig erzieht in leichtem Umfangen
Die mächtige, die göttlichschöne Natur.
Drum wenn zu schlafen sie scheint zu Zeiten des Jahrs
Am Himmel oder unter den Pflanzen oder den Völkern
So trauert der Dichter Angesicht auch,
Sie scheinen allein zu sein, doch ahnen sie immer.
Denn ahnend ruhet sie selbst auch.

Jetzt aber tagts! Ich harrt und sah es kommen,
Und was ich sah, das Heilige sei mein Wort.
Denn sie, sie selbst, die älter denn die Zeiten
Und über die Götter des Abends und Orients ist,
Die Natur ist jetzt mit Waffenklang erwacht,
Und hoch vom Äther bis zum Abgrund nieder

Nach festem Gesetze, wie einst, aus heiligem Chaos gezeugt,
Fühlt neu die Begeisterung sich,
Die Allerschaffende wieder.


(...)

Tal como num dia de festa...

Tal como num dia de festa, pela manhã sai,
Para ver o campo, o lavrador, quando
Do calor da noite caíram refrescantes raios
Continuamente e já longe ainda ressoa o trovão,
De novo ao seu leito regressa o grande rio
E fresco viceja o solo
E da videira goteja a chuva
Que do céu trouxe alegria e resplandecentes
Ao sol silencioso se erguem as árvores do bosque:

Assim se erguem em propício tempo,
Aqueles que nenhum mestre por inteiro educa, mas aquela
Que é maravilhosa e imensa e de uma leveza envolvente,
A poderosa, a divinamente bela Natureza.
Por isso quando ela parece dormir em algumas épocas do ano
No céu ou entre as plantas ou os povos,
O rosto dos poetas também se entristece,
Parecem estar sós, porém sempre estão cheios de pressentimentos.
Pois, pressentindo, ela própria também repousa.

E eis que o dia nasce! Esperei e vi-o aproximar-se,
E para o que vi, sagrada seja a minha palavra.
Pois a prórpia Natureza, mais antiga do que as eras
E superior aos deuses do ocidente e do oriente,
Acordou agora com o fragor das armas,
E descendo das alturas do Éter até aos abismos
Segundo a firme lei antiga e gerado do sagrado caos,
O entusiasmo que tudo cria volta
A fazer-se sentir de modo novo.

(...)

Friedrich Hölderlin, Hinos Tardios, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000.

22 março 2007

Gran lume

















Quando 'L Gran Lume

Quando 'l gran lume appar nell' oriente,
Che 'l nero manto della notte sgombra,
E dalla terra il golo e la fredd' ombra
Dissolve e saccia col suo raggio ardente;

De' primi affani, ch' avea dolcemente
Il sonno mitigati, allor m'ingombra:
Ond' ogni mio piacer dispiega in ombra,
Quando da ciascun lato ha l'altre spente.

Cosi mi sforza nimica sorte
Le tenebre cercar, fuggir la luce,
Odiar la vita e desiar la morte!

Quel, che gli altri occhi appanna, a' miei riluce:
Perchè chiudendo lor, s' apron le porte
Alla cagion ch'al mio sol conduce.


Quando o grão lume surge lá no oriente,
que o negro manto desta noite afasta,
e sobre a terra o gelo se desgasta,
já dissolvido no seu raio ardente,

a antiga dor, que o sono gentilmente
me adormentara, acorda mais nefasta:
que quando aos outros o prazer se gasta
é que revive o meu mais docemente.

Assim me força uma inimiga sorte
às trevas procurar, fugir da luz,
odiar a vida e desejar a morte.

Que a um outro olhar 'scurece, ao meu reluz:
se fecho os olhos, abrem-se-me as portas
à dor profunda que a meu sol conduz.

Vittoria Colonna
Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos, Porto, Asa, 2001.


Etna publicado no Grammateion

Deserto em nós
















2002


os viajantes da noite murmuram o teu nome
e as areias do deserto derramam sobre quem te pisa
o perfume do almíscar.
da formusura da invocação sabemos a beleza do invocado
como pelo verdor das margens se pressente o rio.

Ibn Sâra, Santarém, séc. XII/ XIII


Dentro em teus olhos
























Sappho
Pintor desconhecido, entre 59 e 79.
Fresco de Pompeia, 31 x 31 cm.
Museo Archeologico Nazionale, Nápoles.


(fragmento 29)

Ergue-te e fita-me
De amigo a amigo:
Mostra-me o encanto
Dentro em teus olhos.

Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos, Porto, Asa, 2001.

20 março 2007

Prima Vera


Pina Bausch, A Sacração da Primavera, 1975.
Wuppertal Tanztheater ao som de Igor Stravinsky

Tempo estado


















Tigre velho na neve
Katsushika Hokusai [
葛飾北斎], 1849.
Tinta, cores e gofun* sobre ceda, 39
x 50 cm.
Colecção privada.

* Pigmento branco de carbonato de cálcio que se obtém pela pulverização das conchas de ostras e ameijoas.


Se ao menos os céus me concedessem outros dez anos...
Se ao menos os céus me tivessem condecido só mais cinco anos,
ter-me-ia tornado um grande artista.

Katsushika Hokusai


A mão deve estar vazia
























Peixe e pedras
Bada Shanren
[八大山人]* (homem
montanha das oito grandezas), 1699.
Tinta sobre papel, 134,6 x 60,6 cm.
Metropolitan Museum of Art, Nova Yorque.

* Zhu Da [
朱耷]

"Certa pintura chinesa de paisagem pede velocidade, só pode ser executada com o mesmo relaxamento da pata do tigre quando salta. [Para isso é preciso ter estado contido, concentrado, porém sem tensão. (*)] Do mesmo modo o caligrafo deve primeiro recolher-se, carregar-se de energia para dela se libertar depois, para dela se descarregar. De uma só vez. (**) (...) A mão deve estar vazia (1) a fim de não pôr obstáculos ao influxo que lhe é comunicado, deve estar pronta para o mais pequeno impulso, assim como para o mais violento. Suporte de eflúvios, de influxos." (2)

(*) "A meditação, o recolhimento diante da paisagem pode durar vinte horas e a pintura algumas dezenas de minutos. Pintura que deixa lugar ao espaço."
(**) "A calma do tigre quando salta, mesmo em religião. No Tch’an, no Zen, o mais impressionante é a instantaneidade da iluminação."
(1) De que vazio se trata? Trata-se não do vazio mas do "lugar deixado vazio" pelo autor e de – como adianta Michel Foucault no famoso texto – se descobrir o que esse deixa a descoberto (tarefa para a qual – para quem se aventure – a máxima atenção e cautela são nada, visto que: physis dè xath'Herákleiton kryptesthai philei).
(2) Henri Michaux, Ideogramas na China [Idéogrammes en Chine (Gallimard, Paris, 1986)], tradução de Ernesto Sampaio (Edições Cotovia, Lisboa, 1999), págs. 28-29.

Henri Michaux sob citação no Grammateion

Orthopolitismos

















Fénix
Katsushika Hokusai [葛飾北斎], 1847 a 1848.
Tinta sobre papel, 39,4 x 53,1 cm.
Uffizi, Florença.


Embora como um fantasma,
andarei levemente pelos campos de verão.

Katsushika Hokusai


Antes de mais quero avisar que esta posta foi já prometida no comentário posterior à posta Do bem viver que publica excertos da carta a Meneceu de Epicuro.

Porque se poderá dizer da reencarnação que é politicamente correcta? O que pode ter a reencarnação a ver com política, quando o assunto parece ser notoriamente religioso e a actualidade ocidental não acumula ambos os poderes numa só pessoa?

Não há dúvida que o assunto é religioso e não meramente parece, mas a componente política da continuação e manutenção de um bom estado das coisas parece reclamar a consciência da reencarnação. A política, como todos sabemos, trata dos assuntos da cidade, e a cidade, como tal, é o conjunto dos cidadãos socialmente contratados com direitos e deveres.

Pensando a política no momento fixo do seu acontecer, enquanto estratégia de resolução dos problemas imediatos, a reencarnação não tem qualquer lugar. Não se encontra a evidência da sua necessidade. Mas se pensarmos a política como gestora do contínuo evolutivo da cidade o caso muda de figura. Nesta mais abrangente relação temporal faz todo o sentido a implementação de credo numa consciência regressiva. E é aqui que o problema se torna de difícil classificação, pois a implementação de credos, à partida, nada tem a ver com política e sim com religião; todo o conjunto legislado de um sistema político separado da religião, advém de uma secular experiência pragmática do que está certo e errado para o bem-estar da cidade. O bem viver de todos os cidadãos, na medida possível, é o primeiro objectivo político. Isto sem falar da ilusão de não-credo de todos os actuais auto proclamados cépticos, que é assunto a desenvolver noutra ocasião.

Sendo assim, descobrindo nas regras políticas a existência verificável dos factos, não se apresenta como certa a fundação de crenças. Quer queiramos quer não, por maior ou menor romancismo, aceitar a reencarnação implica, até certo ponto que se codifica limite no ocidente, acreditar. Para uma sociedade que só reconhece a prova física num sistema de verificação experimental, será muito difícil aceitar provas de uma consciência mental remota, mesmo que igualmente verificáveis pela experiência. Sabemos que a mente existe mas não temos onde a localizar, já que esta depende da consciência e não há topos* para a última.

A confirmação de existência da reencarnação, tal como ela é feita no Budismo, não deixa de ser científica na sua verificação experimental, embora não seja possível a sua verificação física. Processa-se por métodos de sofisticação elevada no modo como se analisam as reacções mentais intuitivas do sujeito a ser analisado. E só depois de uma bateria interminável de testes se chega a verificar que uma dada criança poderá ter sido um mestre outrora falecido. Isto é, desta criança nunca se irá considerar que tem a identidade do mestre, é uma pessoa completamente única e individual que não se confunde com a outra. Simplesmente se diz que mantém algo da consciência do falecido, um seu determinado nível muito simples embora complexo: a consciência subtil. E no caso de uma pessoa que treina uma vida inteira para reconhecer em si este estado de consciência, defende a investigação filosófico-científica do Budismo para um reencarnado, torna-se possível manter algo existencial da identidade anterior. Logo, este indivíduo saberá reconhecer como seus — não são dele e sim do anterior — artefactos muito vulgares que não se distinguem de tantos outros de igual compleição entre os quais não havia maneira nenhuma de os descobrir senão por aturado conhecimento prévio. Esta pessoa reencarnada, portanto, somente é a pessoa anterior ao nível da dita consciência subtil. Sendo que esta consciência, que se alega manter depois da morte, indestrutível, em nada transporta a identidade da pessoa que faleceu para a nascida, somente perdura nela uma espécie de memória intuitiva que está tanto mais presente quanto mais se terá treinado este estado em vida. Como que uma subsunção da existência vivencial com a de uma espécie de mortificação artificial. Este estado de consciência subtil é um tal estado para nós que corresponde à nossa não existência individual física e até mental. A consciência subtil, que não deve confundir-se com a alma, é ainda anterior à mente na existência humana, e é pela presença desta durante a percepção clara e vívida daquela que, sob domínio da pessoa que tanto treinou para isso, algo da existência vivencial do indivíduo que morre pode passar para o indivíduo que nasce.
Isto faz com que a ideia que temos no ocidente de reencarnação se legitime tanto como um conto de fadas. Eu, Sara, nunca fui antes, nem seria possível remontar a minha identidade a uma existência passada. Nem princesa nem lavadeira. Contanto, algo pode manter-se, mas, segundo as investigações do Budismo Tibetano, só podemos manter alguma consciência individual que seja, enquanto consciência subtil, se tivermos experimentado a percepção dessa consciência em vida e, por muito hábito disso, retido os seus modos. Afirmar que a reencarnação, tal como a tentei descrever tão sucintamente quanto pude, não existe, é uma crença tão forte como a da afirmação da sua existência; e isto porque não temos meio de o verificar pessoalmente sem termos dedicado a vida a tal treino de morte (que se revela treino de vida). Porque se trata de um determinado treino da morte ao nível da consciência através da imaginação, assunto para o qual aconselho a leitura de Robert Thurman.
Para um suposto e auto considerado céptico, não só a nossa ideia de reencarnação surge como um disparate, como a do Budismo não se aceita provada. Os materialistas radicais, muito em voga durante o séc. XX, não aceitam qualquer prova que não seja fisicamente palpável. E como tal é para nós ocidentais incontornável, a reencarnação não vingará como realidade confirmada mas sim como um credo que podemos ou não votar.

No entanto, o facto de ser necessária a constituição de um credo, já que a reencarnação não seria aceite como realista pelo mundo político ocidental sem prova física dada pela nossa ciência, materialista radical, não implica que a reencarnação não seja o que de mais politicamente correcto há no ponto de vista da preservação do nosso bem viver. Estamos na ordem das técnicas de manutenção de conquista. O problema fundamental da política recente já não é tanto o da segurança mas sim o da economia, e mais recentemente ainda juntou-se à economia a ecologia. Tanto uma como a outra tratam da oikos**, que é a nossa casa comum. E numa época globalizada como a nossa, em que tantas culturas se fundiram em muito poucas, esta oikos** é o nosso abrangente ecossistema. Está no bom cuidado da nossa casa (eco) que se mantém ou proporciona o bem viver. E é aqui que faz todo o sentido falar em reencarnação.

Podíamos alegar que a preservação da nossa casa deve depender da boa vontade e boa fé de todos os cidadãos do mundo, que é por aí que se resolve o problema, mas esta alegação é tão ilusória como imaginar que a ciência materialista radical vai aceitar a reencarnação como um dado de facto. A verdade é que países como os Estados Unidos da América, que têm um grande peso mundial, não estão a tomar medidas políticas que apostem na preservação ecológica. A nossa casa continua e continuará a ser poluída e o aquecimento global não para de aumentar. Mas porquê isto? Porque se tomam medidas prejudiciais para a Terra quando é o único lugar no universo que nos é dado possível viver? Já nem falo da tremenda falta de ética que subsiste nesta acção despudorada. Em prol de uma economia crescente, só para alguns, claro, prejudica-se uma ecologia de todos que está já tão perigada. Não vou defender que a economia deve ser posta de lado para se tratar da ecologia, de ambas depende o ecosistema, mas se não se tomam urgentes medidas em defesa da ecologia em pouco tempo não haverá mais economia a fazer.

Não será por puro egoísmo que se tomam as medidas que se têm tomado a favor da poluição? Não será porque quem toma estas medidas está com a ideia de que as consequências que delas advêm não cairão sobre si? O aquecimento global começa a dar sinais da sua reclamação, mas isto, pensam os políticos egoístas e irresponsáveis, não será nem para os seus netos. Porque deverão eles estar a preocupar-se com uma coisa que é nada para eles? Cada um trata de si safando-se como melhor pode, por isso, se a solução de hoje é continuar a queimar petróleo e lançar tantos outros lixos para a ecoesfera é isso que tem de ser feito. E os outros que aí vêm para depois quando vier a consequência? Não importa. Não é por se preocuparem com mais que si próprios que estes políticos vão tomar decisões para o futuro.

Eis que começa a fazer sentido a implementação de um novo paradigma de entendimento para estas tão irresponsáveis e imediatistas medidas económicas. Se todos os cidadãos tivessem a reencarnação como um dado adquirido, e por aí soubessem que haveria sempre a possibilidade de um determinado regresso, mesmo que noutra identidade, teriam mais cuidado com a provável retaliação da natureza.

Mas, como fazer isto? Voltamos à dificuldade inicial. Como se institui politicamente a ideia do regresso sem recorrer à crença religiosa quando a nossa ciência aposta radicalmente na superficialidade da matéria?

* Lugar
** Casa

19 março 2007

Cor em si
























Laib a colher pólen de Dente-de-leão.

















Laib a peneirar polén de Dente-de-leão no pavilhão Alemão
da Bienale de Veneza de 1982.

























Pólen de Dente-de-leão
Wolfgang Laib, 1990.
Pólen, 60 x 80 cm.
Gallery Burnett Miller, Los Angeles.


«(...) O pólen tem cores incríveis que nunca poderiam ser pintadas, mas não é um pigmento e a sua cor é apenas uma qualidade entre muitas, como uma mão tem cor, ou o sangue é vermelho, mas não é um líquido vermelho, e o leite é branco, mas não é um líquido branco. É a diferença entre um pigmento azul e o céu.»

«O leite e o pólen são extremamente belos, como o Sol ou o céu. E porquê ter medo da beleza? Recentemente muitos artistas, especialmente artistas alemães, parecem pensar que tem de ser tão feio e brutal quanto possível. A beleza é burguesa..., que ideia tão estranha. Eu tento participar em coisas belas... e esta é a minha grande fortuna.»

Wolfgang Laib sob citação no Synapse

Fotografia de Wolfgang Laib

Da origem

















Paraiso XXXII
Sandro Botticelli, 1480 a 1495.
(No verso o texto do Paraiso XXXI)
Aparo e tinta sobre pergaminho, 32,5 x 47,5 cm.
Kupferstichcabinett, Berlim.

(...)
«La piaga che Maria richiuse e unse,
quella ch'è tanto bella da' suoi piedi
è colei che l'aperse e che la punse.
(...)

(...)
«A chaga que Maria fecha e ungiu,
aquela que tão bela eis a seus pés
foi quem a tendo aberto a então pungiu.
(...)

Dante Alighieri, A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Bertrand, 2002.

Da costela

















Paraiso XXVI
Sandro Botticelli, 1480 a 1495.
(No verso o texto do Paraiso XXXI)
Aparo e tinta sobre pergaminho, 32,5 x 47,5 cm.
Kupferstichcabinett, Berlim.


(...) «Dentro da quei rai
vagheggia il suo fattor l'anima prima
che la prima virtú creasse mai.»
(...)

(...)«Em tais raios está
a adorar seu factor essa alma prima
que a primeira virtude criou já.»
(...)

Dante Alighieri, A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Bertrand, 2002.

Diagrama cosmológico


















Paraiso II
Sandro Botticelli, 1480 a 1495.
(No verso o texto do Paraiso XXXI)
Aparo e tinta sobre pergaminho, 32,5 x 47,5 cm.
Kupferstichcabinett, Berlim.



(...)
Dentro dal ciel de la divina pace
si gira un corpo ne la cui virtute
l'esser di tutto su contenuto giace.
Lo ciel seguente, c'ha tante vedute,
quell' esser parte per diverse essenze,
da lui distratte e da lui contenute.
Li altri giron per varie differenze
le distinzion che dentro da sé hanno
dispongono a lor fini e lor semenze.
Questi organi del mondo cosí vanno,
come tu vedi omai, di grado in grado,
che di sú prendono e di sotto fanno.
(...)


(...)
Dentro do céu dessa divina paz,
um corpo gira ao qual virtude escuda,
que nela o ser de seu contento jaz.
O céu seguinte, e tanta luz lhe acuda,
parte em várias essências tal presença,
cada uma dele vinda e conteúda.
Mais círculos em vária diferença
as distinções que dentro em si pois hão
dispõem a seus fins e mais semença.
E estes órgãos do mundo assim lá vão,
como ora já verás, de grau em grau;
recebem do alto e em baixo têm acção.
(...)

Dante Alighieri, A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Bertrand, 2002.

18 março 2007

Oxidação

A 18 de Março de 2007 deixou de poder encontrar-se um poemeto que tinha pubicado à catorze dias. A causa desta misteriosa oxidação continua desconhecida e desconfio que não venha a desvelar-se. Resta um espaço esvaziado onde estiveram já catorze linhas de texto e a apontar o lugar mantém-se a marca de uma oxidação passada. O símbolo do entre que se sub-repta ao visível.

15 março 2007

Ao vivo
























Sem Título
Rui Moreira, 2006.
Caneta de gel sobre papel, 240 x 160 cm.
Desenhos em exposição até ao dia 7 de Abril
na galeria Lisboa20 Arte Contemporânea.

14 março 2007

Destes movimentos
























Tronco de ameixieira em flor
Katsushika Hokusai [
葛飾北斎], 1800.
Tinta e cores sobre seda, 24,8 x 36,4 cm.
Nelson-Atkins Museum
, Kansas City.


Ameixieira em flor —
Repousam
As chamas do inferno


Issa Kobayashi, Primeira Neve, trad. Jorge Sousa Braga, Lisboa, Assírio&Alvim, 2002.

Cymbidium

















Orquídea
Katsushika Hokusai [
葛飾北斎], 1833. Da série Flores Grandes.
Impressão policromática com blocos de madeira, 24,8 x 36,4 cm.
Museum f
ür Ostasiatische Kunst, Berlim.


O caracol
Nem um só olhar concede
À flor escarlate


Issa Kobayashi, Primeira Neve, trad. Jorge Sousa Braga, Lisboa, Assírio&Alvim, 2002.

para diante

all ignorance toboggans into know
and trudges up to ignorance again:
but winter's not forever,even snow
melts,and if spring should spoil the game,what then?

all history's a winter sport or three:
but were it five,i'd still insist that all
history is too small for even me;
for me and you,exceedingly too small.

Swoop(shrill colective mith)into thy grave
merely to toil the scale to shrillerness
per every madge and mabel dick and dave
—tomorrow is our permanent address

and there they'll scarcely fine us(if they do,
we'll move away still further:into now



toda a ignorância escorrega para o saber
e de novo se arrasta para a ignorância:
mas o inverno não é para sempre,mesmo a neve
derrete;e se a primavera estragar o jogo,que fazer?

toda a história é um desporto de inverno ou três:
que fossem cinco,eu seguiria insistindo que toda
a história é demasiado pequena até mesmo para mim;
para mim e para ti,excessivamente demasiado pequena.

Mergulha(extridente mito colectivo)na tua tumba
tão-só para trabalhar a escala até à hiperestridência
por cada magda e marta diogo e david
—amanhã é o nosso endereço permanente

e aí mal nos hão-de achar(se acharem,
mudaremos ainda mais para diante:para agora


in
1x1 de e.e. cummings, 1944
e.e. cumings, xix poemas, trad. jorge fazenda lourenço, lisboa, assírio&alvim, 1998

Oneirwttein


Sigur Rós, Glósóli, 2005.

12 março 2007

Ladrão que os ouviu falar

«Dá-me esse trapo, ou pega na criança,
a ver se a aqueces» . «Deste lado o chão
palha não tem, e alguma há do teu lado».
Ladrão que entrara, e que os ouviu falar,
lançou sobre eles a rasgada capa
roubada noutra parte, e foi-se, em lágrimas.

Anónimo, Índia clássica, séc. IV.
Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos, Porto, Asa, 2001.

09 março 2007

Ponto de vista

















A Grande Onda de Kanagawa
Katsushika Hokusai [
葛飾北斎], 1831. Das Trinta e seis vistas do Monte Fuji.
Ukiyo-e [浮世絵] (retratos do mundo flutuante), estampa japonesa.
Impressão policromática com blocos de madeira, 25,4 x 37,1 cm.
Hakone Museum, Japão.

A axonometria é um sistema de representação visual em que a profundidade perspéctica não é regida pelo centrismo dos pontos de fuga. Nenhum elemento representado depende dos pontos a partir dos quais se traçam as linhas rectas que, sendo de relação cónica entre si, se abrem até uma determinada distância considerada próxima; na qual o aumento de tamanho do objecto indica para mim maior proximidade. Na perspectiva axonométrica, em que as linhas de profundidade, por serem paralelas, não convergem para pontos de fuga, não sei a que distância estou desse objecto nem mesmo de onde o observo. E não sei onde me encontro simplesmente por não estou lá representada. A minha natural "antropocentrometria" não se contempla. Trata-se da ausência do sujeito observador centrado a partir de si. Isto é, não se pode identificar neste tipo de representação um ponto de vista antropocêntrico. Ou ainda, não existe na axonometria a perspectiva fotográfica, tão divulgada pela renascença, de que todos os humanos têm hoje a consciência dependente. Sendo assim, neste sistema os objectos são como que representados por si próprios tal qual são e não por meio do meu ponto de vista perspéctico que os distorceria, tanto mais quanto mais próxima deles estivesse. E qualquer deslocação lateral que se imponha necessária também não modifica em nada a forma observada. No fundo isto é um meio de me abandonar no espaço sem que o meu lugar tenha determinação, estou em todo o lado ao mesmo tempo e por isso tenho uma experiência que é, embora devidamente limitada, de omnipresença. E o que isto significa não é mais que o facto de outros observadores da mesma situação partilharem rigorosamente o mesmo ponto de vista alargado.

06 março 2007

Oxidação

Um misterioso caso de oxidação literária aconteceu num poemeto que publiquei há dois dias. Como só hoje regresso ao blog, não faço ideia o que terá acontecido mas cá me parece que uma oxidação como esta, enquanto se não encontrar a causa, continuará a reduzir. Confesso que não é da minha predilecção, mas, contudo, pelo amor que lhe tem a minha mãe, resolvi deixá-lo visível. Vejamos se algum comentário pode servir de anti-oxidante.

Posteridade



















Paisagem (O Mar de Gelo)
Caspar David Friedrich, 1823/24.
Óleo sobre tela, 96,7 x 126,9 cm.
Kunsthalle, Hamburgo.


Assim como os textos dos antigos foram posteriormente nomeados, também as pinturas de Friedrich. Segundo foi dito na recente exposição da sua obra em Hamburgo, Caspar recusava qualquer relação com os artistas que intitulava pintores de escrita (...) e sugeria aos que eram que fariam melhor em escrever os textos e pendurá-los na parede, em vez de se darem ao trabalho de pintar quadros. (...) E como as suas pinturas não representavam os conceitos da filosofia alemã tanto menos tinham títulos temáticos. Às suas telas dava o descomprometido nome de Paisagem. Hoje, contudo, já não é possível esta solução, até o comum Sem Título carrega o seu pendor.

Título

Sanghyang

Cerimónia de dança e canto ritual do Bali, cuja religião deriva de uma mistura do Hinduismo com o Budismo e ritos locais, que durante os anos vinte do século passado, numa colaboração entre o indígena Wayan Limbak e o pintor alemão Walter Spies, se transformou na famosa dança de transe ritual kecak. O sanghyang era praticado como forma de exorcismo dos maus espíritos de uma dada aldeia e tinha uma configuração coral semelhante à que agora se exibe ao mundo, embora bastante mais exótica. Enquanto que o sanghyang era um ritual de dança e coro profundamente religioso, de grande impacto na cultura local, o kecak, sem lhe tirar o valor plástico que tem, é um ritual criado para os visitantes da ilha e tem muito pouco ou nenhum impacto para os indígenas que não seja o turismo fomentado. O kecak foi trabalhado de forma a fazer pleno sentido para as outras culturas sendo que lhe foi introduzida uma narrativa que o sanghyang não tinha. E assim se perdeu mais uma das riquezas culturais religiosas do mundo em prol de uma arte global.


Ron Fricke, Baraka, 1992.

O kecak tem as suas raízes no sanghyang e no Ramayana Hindu. A figura central representa Rama, uma incarnação de Vishnu (deus que mantém o universo), personagem principal do Ramayana que tem o objectivo de salvar a sua mulher Sinta das garras do malvado Rei Rahwana. Os restantes dançarinos cantantes representam o exército de macacos que se junta a Rama para o ajudar a salvar Sinta (...).

04 março 2007

Cymbidium
























Fevereiro 2007

Gold


Partita nº6 em Mi menor de Bach por Glenn Gould
Sarabande, Tempo di gavotta e Gigue
BWV 830

'

Quotipiano


Excerto do documentário The Art of Piano
Estudo da Partita nº2 em Dó menor de Bach por Glenn Gould
BWV 826

Categorias

Condições de Reutilização

spintadesign

Free Blog Counter