Que o amigo seja para vós a festa da terra

26 novembro 2010

Planódia
























Páscoa 2006


Planódia

Dedico este texto a Pedro A.H. Paixão e Rui Moreira

pela constante partilha na disposição ao encontro.

Introdução

Uma coisa é um texto para filósofos, outra coisa é um texto para toda a gente, e como este texto está aqui publicado para ser lido por toda a gente, pelo menos toda a gente que visita o Projecto 10, a sua leitura tenta ser tão acessível quanto possa. No entanto, algumas ideias são tão difíceis de tornar acessíveis que o esforço desta escrita poderá resultar completamente chato. Sendo assim, e porque é necessário contemplar as duas abordagens, a mais simples e a mais complexa, resolvi dividir o assunto em duas partes. Começo pela primeira num tom coloquial e estilo mais narrativo, para depois me concentrar nas dificuldades filosóficas que pretendo focar no assunto proposto.

Antes de mais convido-vos a ler a apresentação do editor que me convidou, é uma bela nota de esclarecimento: é importante perceber que em ciências sociais, ou não há “ciências” ou não há “sociais”, mas não é por isso que deixamos de lhes falar. Leiam! E a filosofia não é nem ciência nem ciência social, esta última uma contradição nos termos, mas ainda assim também não deixa de ser uma disciplina científica com todos os rigores que têm quaisquer destas disciplinas.

Aproveito ainda para dizer que o título deste texto, transliteração do grego planvodia, não se refere a uma paródia, embora todo o texto que se escreva não vá muito além disso, e esclareço que se trata da mera colocação correcta do nosso lugar enquanto seres errantes. Do “errar é humano” deve ler-se deambular, a natureza nómada da nossa condição na descoberta das coisas. Todos os Homens são seres errantes, que andam estrada fora, e o que os distingue entre si é o modo como o fazem.

A Ciência e a Filosofia

Desde que me lembro de mim a maior parte das pessoas pergunta porque é que há uns quantos, muito poucos, que resolvem, ou resolveram dedicar-se a pensar mais que a maioria, uma vez que o que eles fazem ou fizeram não parece ser tão útil como é aquilo que outros, que pertencem a um grupo maior, fazem como contribuição para a nossa compreensão do como é que as coisas funcionam e devem ser aplicadas. Para que serve perguntar porquê quando nos parece que o necessário é saber como?

Para que serve a filosofia quando temos a ciência? Ou melhor, o que é isso de filosofia, não é uma disciplina obscura dos primórdios da ciência? — Pausa para pensar com um dedo encostado ao queixo e um leve vocalizar gutural — O que é que a filosofia ainda nos trás de novo para que a ciência não tenha dado já resposta? A filosofia não serve para nada… É o que provam as políticas que se têm vindo a propor na educação: uma disciplina que deixou de fazer sentido e não tem qualquer utilidade prática, nem para o conhecimento nem para a formação do indivíduo, senão porque se proporia deixar de fazer parte do currículo geral? A tendência é esquecer a natureza criadora dos conceitos porque eles já estão todos postos e basta tratar da sua actuação, como se articulam e aplicam, etc. O porquê não interessa, já não preciso saber o porquê das coisas, isso ficou resolvido a partir do momento em que o marketing, a publicidade e outras disciplinas semelhantes nos revelaram que afinal quem cria conceitos não é a filosofia. Essa disciplina empoeirada, densa e difícil que só dá acesso a alguns, e que implica anos e anos a fio de estudos, para perceber arduamente o que essas e outras disciplinas nos mostram ser tão simples e fácil de entender... Para quê, para quê complicar o que é tão simples??? Não dá para perceber… Vejam mas é televisão e dediquem-se à ciência que a filosofia é uma perda de tempo.

Este é o tom que nos rodeia desde Tales, o sábio de Mileto, quando a escrava Trácia o gozava por ter caído num buraco enquanto olhava para as estrelas. Ele não olhava para as estrelas, lia-as, e dessas leituras chegou a tomar decisões com imenso resultado prático económico. Sim, lucros financeiros, lucros na venda de um terreno seco e morto que tinha comprado muito barato, quando soube pelas estrelas que iria ser renovado com uma cheia. Trácia não sabia o que gozava. Mas podemos dizer que este episódio antigo está no foro da ciência e não da filosofia, e de certa forma não poderia pertencer à filosofia porque esta só nasce mais tarde com o fim da época dos sábios. Costumamos dizer que filosofia é o amor pela sabedoria, mas essa noção está tão errada quanto é errado assumir que as palavras compostas a começar por filo são o amor do que quer que seja, ou então temos de tomar o amor como nos apresentou Platão no Fedro, uma mania, uma entrega delirante. A filosofia é a entrega ao saber sobre uma forma da loucura que afecta alguns até à alma, é o prendimento obsessivo pela senda do saber, é o nobre entusiasmo de regressar à sabedoria, é uma das formas mais altas da total abertura ao encontro.

Mas o episódio de Tales também não pertence à ciência, essa virá mais tarde. Podemos dizer que é um episódio na história da filosofia, tanto quanto apraz à tradição dizê-lo pré-socrático. Foram escassas as épocas em que os filósofos eram verdadeiramente tidos em conta. Todos sabemos que os cientistas são fundamentais para as nossas sociedades, mas, e os filósofos, fazem alguma coisa de útil? Aparentemente não, embora se acabe a perceber que sim. Mas, então o que é que a filosofia faz de facto que a ciência não conhece? A resposta não é simples, pelo menos não é tão simples como era quando Bertrand Russell a deu acerca d’O Valor da Filosofia enquanto um d’Os Problemas da Filosofia. Segundo o filósofo analítico inglês, (…) mal se torna possível um conhecimento preciso naquilo que concerne a determinado assunto, logo perde o nome de filosofia, para se tornar uma ciência especial. (…) E assim nos mostra que enquanto a filosofia vai descobrindo o porquê das coisas, as relega à ciência para lhes descobrir o como. É a filosofia que perde sentido num objecto de estudo que já conhece, e é desse conhecimento que nasce a ciência.

O termo “ciência” é a versão latina para a grega epistéme, raiz de onde vem a epistemologia, disciplina filosófica que trata das ciências e do conhecimento científico, o discurso sobre as ciências. A epistéme é um tipo de crença, uma crença verdadeira justificada, mas não deixa de ser uma crença. Assenta obrigatoriamente em dogmas verificáveis que podem variar consoante o surgimento de novos dados. A ciência, numa direcção contrária à da filosofia, é a disciplina por excelência da procura. A procura daqueles elementos que vão permitir provar e demonstrar como é que o provável se torna verdadeiro. O cientista sabe muito bem o que procura, o que não quer dizer que não encontre fora do que procurava, e aí ganha um contorno mais aberto, próprio da filosofia. Nada é absolutamente uma única coisa. A ciência, em última análise, não é tão diferente quanto isso de uma religião que se mantém aberta à descoberta de um novo texto sagrado, mesmo que este contradiga o anterior, embora lhe seja tão resistente que só aceita mudar os seus dogmas depois de uma muito aturada verificação. Um pouco como acontece na proliferação das diversas escolas do Budismo, a diferença é que este assume e postula inteiramente a necessidade e importância da crença.

A filosofia, por sua vez, actua como pedra de toque na desambiguação entre o que é caminho para a verdade e o que não passa de uma prisão dogmática, libertando o conhecimento humano dos preconceitos que o levam a seguir as fórmulas estabelecidas. Sempre que se levanta o véu de um problema resolvido para encontrar outro, torna-se necessário regressar à filosofia para esclarecer o âmbito de acção deste segundo. É aqui que se percebe que a resposta de Russell tende a ser um pouco simplista, ou desactualizada, até mesmo para a sua época. A física, cuja ciência se podia dizer de facto scientia (conhecimento do certo), em meados do séc. XX começou a assumir contornos muito menos definidos. Com a introdução da mecânica quântica, o núcleo duro da ciência inaugurou uma linha científica de possibilidades que têm vindo a questionar tudo o que temos como certo nas leis da física. Hoje em dia não é estranho ter um físico como um ser espiritual enigmático, cujas respostas ao funcionamento da realidade física não cessam de nos trazer espanto e perplexidades, algo que sempre foi muito mais comum na filosofia.

Segundo a mecânica quântica, e isto tem vindo a exponenciar-se com a evolução dos aceleradores de partículas, afinal não estamos num mundo de quatro dimensões. Enquanto que a nossa percepção só conhece as quatro dimensões espácio-temporais, segundo os físicos proponentes da teoria das supercordas (superstring theory) a realidade tem de ser composta por inúmeras mais, para que a mecânica quântica se possa compatibilizar com a teoria da relatividade de Einstein. Ambas estão certas (são ciência) mas quando se juntam para criar uma teoria unificadora, a Teoria de Tudo, TOE (theory of everything), as suas verdades contradizem-se, obrigando à colocação de outras dimensões. Chegam a ser propostas 22 dimensões extra, como é o caso das resultantes na equação de Polyakov. Mas não ficamos por aqui, as propostas estranhas são muitas mais, e é preciso estofo filosófico, diria até religioso, para seguir a viagem da física nos dias de hoje.

Com a evolução dos grandes aceleradores de partículas, como é o caso do já tão afamado LHC (Large Hadron Collider) do CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire, actualmente Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire), parece possível estender as fronteiras além do imaginável, e o físico começa a ter verdadeiramente uma atitude filosófica de encontro ao desconhecido, ultrapassando a mera procura da ciência. Uma das propostas que mais maravilha, é o facto das partículas constituintes da matéria, os quarks, poderem precisar da nossa atenção para virem à existência, postulando o que já se conhece no Budismo há milénios, que toda a realidade é produzida pela imaginação e que sem nós, seres humanos, nada existiria. Igualmente interessante é o que acontece quando se separam duas partículas que sempre estiveram juntas, distanciando-as em muitos quilómetros. Quando estas estão juntas é normal que a nossa acção sobre elas produza em ambas o mesmo efeito, afinal estamos a agir sobre as duas ao mesmo tempo com o mesmo princípio de acção, mas o inacreditável acontece quando as separamos a uma distância que é incalculável à nossa percepção sem recorrermos às unidades métricas. Separadas por milhares de quilómetros, elas agem como se estivessem juntas. Quando se age sobre uma delas num lugar, no outro a que foi separada parece reagir concomitantemente tal e qual como aquela sobre a qual se agiu. Mistérios que ainda pouco nos atrevemos a formular como ciência, embora tenham sido levantados pela disciplina que sempre foi o seu baluarte. A tendência natural para o futuro, parece agora, é o regresso da ciência à filosofia, não das disciplinas que nunca deixaram de lhe pertencer, como é o caso da psicologia, essa nunca foi nem nunca será verdadeiramente uma ciência, por mais ciência social que lhe queiramos chamar, mas de ciências como a física, que se atrevem a romper as barreiras para aventurar-se no mundo dos “porquês” quando os “comos” já não satisfazem. Esta nova forma de ciência mais próxima de regresso à filosofia, já se apresenta como consciente de que a verdade, enquanto a procuramos, se poderá dar como resultado de uma nossa doação de sentido. Estamos quase a pôr em jogo a possibilidade de aceitar que toda a existência é produto da imaginação…

A procura e o encontro

Tanto a filosofia como a ciência desejam a mesma coisa, a verdade, a grande diferença entre elas está na sua metodologia. É a diferença entre as noções de procura e de encontro no caminho para a verdade. No Siddhartha, Hermann Hesse diz que (…) Procurar significa ter um objectivo, mas encontrar significa ser livre, ser receptivo, não ter nenhuma meta (…).

A procura, que é no que consiste o método científico para a busca da verdade, pressupõe uma rede de aplicação com a qual se pode averiguar o que consideramos ser real, uma vez que a consciência das ilusões em que vivemos nos leva a precisar uma confirmação válida do que parece encontrar-se. Trata-se de uma linha orientadora que se dirige por um sistema de adequação, a coincidência entre o supostamente encontrado e a rede lógica de um sistema de procura, que leva à obtenção de respostas num campo de probabilidades. O encontro, por outro lado, pressupõe o despojamento dessa rede predefinida, logo, a sua verdade não se dá por coincidência e sim por disponibilidade e abertura ao improvável. A tessitura que está na base estruturante da procura acaba por limitar o encontro nas possibilidades previstas por ela mesma. É certo que esse tecido vai crescendo, adaptando-se à realidade que procura, sempre na medida em que cauteriza os seus insucessos, mas nunca chega a avançar além disso, está preso a si próprio.

A estrutura preconcebida que está na base da procura resulta numa constante e ousada transgressão do dado real, uma vez que este não está efectivamente disponível, porque a sua preconcepção impossibilita o acesso à concepção própria das coisas por si mesmas. A nossa constituição enquanto seres compreensivos leva-nos a interpretar a realidade, revestindo todos os dados que nos chegam com a nossa doação de sentido. As coisas são para nós o que nós esperamos que elas sejam, e quando surge uma dificuldade compreensiva parece que nos é preferível adaptar o objecto difícil ao nosso entendimento, que o nosso entendimento ao objecto que não quer deixar-se conhecer. Fazemos isto sempre que é necessário suprir a angústia das incertezas e inseguranças que nos são colocadas pelo desconhecido, e isto ganha proporções desmedidas quando nos colocamos no modo da procura em vez de nos disponibilizarmos abertamente ao encontro. Esta insegurança provocada pela resistência que o desconhecido impõe na formação de conhecimento, leva-nos a ter para com os objectos do nosso contacto, um tipo de entendimento que os coloca num nómos adequado, de modo a dar à nossa relação com eles um sentido de coerência, para não arriscar cair na angústia em que uma possível falta de sentido nos depõe. Nómos, aqui, não só designa o uso ou o costume, a tradição, lei ou regra, como também significa o canto e a melodia que unifica a continuidade das percepções. A nossa compreensão da realidade, ou melhor, a nossa versão da realidade nunca chega a ser certa e definitiva, tal como sugere a lei fundamental do Budismo — a lei da impermanência. Isto é incontornável, mesmo que consigamos compreender um dado problema num certo momento, as coisas não se mantêm as mesmas ad infinitum. O nosso conhecimento é limitado e a nossa capacidade de o formar é falível, por isso é inevitável que se formem compreensões ilusórias, e o modo que a estrutura própria da procura tem para suprir o problema das nossas ilusões, é articular um sistema de referências de modo a permitir uma análise epistémica dos aparentes dados com que lidamos.

Numa concepção ortopráxica da realidade, em que a prática certa tem mais importância que a opinião certa, isto não acontece tanto desta forma, o que não significa que a ortopraxia nos deixe completamente de fora dos problemas da angústia, simplesmente acontece que na ortopraxia não há lugar para pensar a insuficiência da crença. A dúvida não é um dos seus dispositivos, ela pertence-nos enquanto demiurgos ortodoxos, que achamos que sabemos, que precisamos de saber, e é na dúvida que se coloca a resistência do desconhecido. Eis porque tantas pessoas se devotam ao culto das suas religiões, porque é na observação das práticas que se resolvem as dúvidas, é na fé que o religioso combate a angústia. Pela ordem de um conhecimento limitado a dúvida não tem solução possível em opiniões, e acaba sempre por vencer as crenças verdadeiras justificadas. É preciso abrir mais que isso. A fé é uma solução possível, mas a fé não nos fala da verdade das coisas, ela não nos leva a um conhecimento que procure ver-se livre da nossa doação de sentido. Se as coisas têm o seu ser próprio, o seu ser em si mesmas, e pretendemos estar abertos a encontrar mais do que procuramos, é preciso ir além da fé. A fé é fé em alguma coisa, implica abertura ao desconhecido mas já está para lá da abertura, no conforto de que as coisas são de uma determinada maneira. No entanto, o que me parece ser muito interessante na fé para esta investigação, é que uma fé inabalável anula o desconhecido, porque se temos fé num determinado improvável não desconhecemos que possa provar-se.

Na ortodoxia, a ordem da opinião certa, não chegamos a ter em consideração prática a lei da impermanência e vivemos o sofrimento constante da perda das nossas determinações de valor, sejam elas exteriores ou interiores à nossa relação corpórea e mental. Torna-se para nós mais importante toda a estrutura do passado que a abertura para o caminho que nos depõe sobre o futuro e permite verdadeiramente encontrar. O facto de termos necessidade da estruturação dessa rede básica de confronto leva-nos, pelo prendimento a ela, a ser incapazes do verdadeiro encontro: este, para dar-se, implica um tipo de abertura que nos depõe sobre um plano místico de incertezas. Enquanto quem procura já sabe, até certo ponto, o que pode ou vai encontrar, quem encontra não sabe que o procurava, e se sabia não pode saber que o que tenha encontrado não é mais que uma sua doação de sentido. Se encontramos o que procurávamos, o que encontrámos foi tingido pela procura. Mas…, será mesmo possível encontrar sem procurar?

No fundo, tanto aquele que encontra como aquele que procura, estão ambos num mesmo sistema de procura, mas cada qual num ponto de vista muito diverso quanto a este sistema. Ao dar-se início uma procura, a partir duma estrutura prévia de encontros possíveis, limitam-se as possibilidades futuras de um encontro não previsto, e o verdadeiro encontro, ou encontro puro, fica adiado. Contudo a procura está sempre presente, mas a procura que pode levar ao encontro acaba por não ser propriamente uma procura no sentido em que a entendemos. Imagine-se um corpo a partir do qual se exerce a procura, este corpo pode ser a dita estrutura entretecida das nossas referências; se o atravessarmos ficamos depostos no fim do percurso, repletos das suas determinações e a estruturação coerente da sua forma dificilmente nos libertará para uma compreensão que a exclua ou contorne, todavia, será ilusório pensar que o podemos eliminar de todo da nossa constituição compreensiva, ele pertence à nossa identidade intrínseca enquanto indivíduos no mundo. Continuemos a imaginar o mesmo corpo, agora, em vez de o atravessarmos observamo-lo de longe, no topo de um ponto de vista elevado, o de quem pretende vir a encontrar algo que não tem de se adequar à estrutura do corpo. Este corpo mantém-se presente mas subsumido numa abertura livre das suas determinações, para isto é essencial manter a melhor e mais desperta atenção à abertura, e assim torna-se possível o desvelar de uma verdade que não se concebe pela adequação à tessitura das referências. Esta dita procura terá, pela sua subsunção com a abertura para o encontro, uma continuidade na concomitância do corpo atravessado com o ponto de vista elevado. O corpo está presente, não há outra forma de seguir uma prática senão de corpo presente, mas este não chega a tingir o resultado da procura e o encontro pode dar-se tão puro e verdadeiro quanto possível.

Este corpo de que falo pode ser o nosso próprio corpo, mas aqui, independentemente do corpo ser ou não ser o nosso, interessa mais a sua noção como meio, aquilo que está no entre que estabelece a distância entre a colocação de um objectivo, pela procura, e uma suposta verdade no fim alcançado do que ela procurava. Interessa-nos o entre, o metaxú, o platónico meio entre o minimamente o maximamente cognoscível. Digamos que nestas duas abordagens ao corpo intermédio, ele tanto é caminho para si, para o objectivo que aponta, como é caminho em si, não dependendo do que aponta no objectivo. O facto é que este corpo é tanto em si como para si e a nossa posição nele não deixa de oscilar entre ambas as formas subsumidas, e é aí que nos devemos manter, entre a sístole e a diástole de um coração que não pára de bater. A verdade interessa tanto menos quanto mais ela se apresenta como definitiva e resolvida, porque é muito difícil (se não impossível) distinguir entre o que é e o que parece ser, e ela não cessa de colocar-se renovada.

Todavia, pergunta o leitor deste texto, será possível o encontro de algo que não nos pertença já? Conseguimos vislumbrar uma verdade que esteja para além de nós? A resposta, naturalmente, é não, mas não porque o encontro que resulta da abertura ao desconhecido não seja possível e sim porque o desconhecido não nos é inteiramente desconhecido. Podemos falar de um desconhecido inteiramente desconhecido de que nunca ousámos sequer especular? Digamos que há uma dimensão do desconhecido que deriva da ignorância e por isso é desconhecido, porque não o conhecemos, mas isso não quer dizer que a possibilidade do seu conhecimento não seja intrínseca à sua própria ignorância. O que não podemos de facto conhecer não chega a produzir ignorância, esta só existe quando a gnose é possível, e se gnose é possível basta criarem-se as condições para a sua formação que, mais cedo ou mais tarde, ela acaba por surgir. Um assunto por nós ignorado, por mais que nos pertença em potência, é para nós um total desconhecido que esconde a possibilidade de se dar a conhecer, é como se fosse algo de que não é possível formar conhecimento. Mas isto acontece exactamente porque, para evitar a angústia da possível perda de sentido do nosso ser no mundo, temos um mecanismo de defesa que elimina o conjunto das possibilidades que estão fora do nosso alcance perceptivo. A negação de um princípio pressupõe à partida a presença desse mesmo princípio que se nega. Se podemos falar em desconhecimento é porque o conhecimento é possível, e por isso não está completamente fora do nosso alcance. Tudo depende do que temos por verdadeiro e de como podemos chegar a conhecer a verdade. E a verdade, é possível? Existe verdade? Para esta pergunta não temos resposta. Ou até temos mas não é uma resposta simples ou directa, ela remete de volta à ideia de que se podemos desconhecer algo então o seu conhecimento é possível. O limite do nosso conhecimento possível está na nossa própria imaginação. O que eu não posso mesmo conhecer nem sequer desconhecer posso.

Como nos mostra Sócrates no Ménon de Platão, todos temos o conhecimento da verdade em nós, até um escravo sem formação em geometria sabe como fazer demonstrações geométricas, caso lhe sejam pedidas de modo a que ele as descubra por si próprio. Sócrates leva-o a conseguir esse feito pela associação de ideias que já lhe pertencem. O escravo era ignorante da demonstração geométrica, mas tinha em si a possibilidade desse conhecimento, bastou levá-lo a perceber isso mesmo. Esta é uma das formas que Platão usa para provar a proto-existência do mundo das ideias. Mas mais impressionante que isso é o próprio significado do termo grego para a verdade, tal como o podemos encontrar no poema de Parménides. A alétheia é um não-esquecimento. Lethe é um dos cinco rios do submundo na mitologia grega antiga, aquele de onde as sombras bebem para apagar as suas memórias e assim poderem reencarnar. Lethe é o esquecimento. Tendo regressado à vida, os sujeitos deste esquecimento imposto pelo rio, têm a possibilidade de recuperar o que conheciam através da progressiva eliminação desse mesmo esquecimento.

A verdade é um desvelamento, o retirar do véu que impede que ela se dê a conhecer ocultando-a. Mas esta desocultação não tem a ver com o que temos de determinado no mundo. É inadequado imaginar que se possa alcançar a verdade por via de uma procura que se arrogue a encontrá-la, partindo do seu próprio suposto pela adequação a uma tessitura de referências. Assim, uma procura que não passe por esse sistema desmistificante pode chegar a atingir o encontro por um desvelamento, tal como se dá uma revelação, como numa epifania. Eureca!!! É a própria disponibilidade atenta à abertura para o encontro, livre de uma doação de sentido que se possa reconhecer como intencional, sem qualquer interpretação prévia, é ela que nos pode dar esta clareira. Clareira que surge no meio da floresta porque existe uma floresta e é preciso caminhá-la com atenção a esta lucidez, sem nos concentrarmos na dogmaticidade dos diversos caminhos. É nesta abertura à luz das possibilidades que não estão determinadas por uma ciência rectificadora, que podemos compreender a noção do encontro, livre da tensão da procura que acaba por ocultar a possibilidade do mistério, tão importante no acesso ao desconhecido. O mistério, aqui, está no delimitar com máximo rigor o indelimitável, como quem vive realmente atento à prática da vida, enquanto esta é vivida, e pretende viver melhor sem que isso implique uma sua suposta forma verdadeira. Isto porque a verdade, para não ser um conceito vazio, precisa de manter-se neste lugar da abertura ao encontro das possibilidades não realizadas. A verdadeira verdade encontra-se na abertura à potência. Percebida a possibilidade do encontro na alteridade aparentemente inacessível, só nos falta uma prática constante do ser-se aberto e do estar-se na abertura.


Sara Constança, Novembro 2010

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