Que o amigo seja para vós a festa da terra

28 julho 2007

Por dar-se


















Lisboa 2007

Definir é mentir
por comum acordo.
E se o que não acorda
não se chega a acordar,
foi por dar-se que acordou.

16-02-1999

Por pedagogia

















Sintra 1996

«Não deveis tornardes
demasiado evidentes,
pois correis o risco de
penalizardes o mistério
das vossas relações.»

Quando
da necessidade
por pedagogia,
deveis tornar
à poesia.

09-12-2002

25 julho 2007

§




















Em Fevereiro, quando nasceu o Skapsis, publiquei uma pequena introdução ao blog e a mim como blogger, que dava algumas pistas para o significado do título. Agora, por respeito aos leitores que entretanto aderiram ao Skapsis, impõe-se uma nova nota de explicação, mas não em relação ao blog.

Depois de cinco meses já não sou tão nova nisto quanto era, e à medida que fui explorando este universo o Skapsis cresceu. Entre as várias evoluções e acrescentos, juntei uma lista viva de categorias. Lista que, em geral, não precisa de introducção, mas há duas categorias que podem implicar esclarecimento: skapsis e §.

Sob a categoria skapsis publico os textos que, como este, dizem respeito à escrita no blog e não fariam sentido fora dele. Sob a categoria § publico imagens e, ou, textos, que fiz ou escrevi. Como vocês, meus prezados leitores, terão percebido, as obras do mundo que aqui se publicam estão identificadas tanto quanto me é possível identificar, e nestas incluo aquelas que do meu fazer já não me pertencem: como é o caso dum desenho, devidamente identificado como todas as outras. No entanto, as feitas por mim e que ainda me pertencem não têm mais identificação que a data, e o lugar no caso das fotografias ou desenhos.

Dá-se o caso excepcional de uma posta que recebeu ambas as categorias; por um lado foi escrita de propósito para o blog e, por outro, é suficientemente universal e objectiva para valer fora dele.

Aproveito para vos agradecer a todos, leitores e comentadores, pela vossa rica presença no Skapsis e desejo-vos boas estadias, na esperança de que este blog continue a ser do vosso agrado.

Beijinhos a todos.

Danço pelo caminho


















Atlântico 2004

Menino veloso lido da luz,

tenho uma nova maneira do acordar.
O beijo que se desprende da imagem na claridade
de lençóis brancos dos teus baptismos. Sonho-te
continuamente
e acordo inspiradíssima,
como tendo unicamente inspirado durante o sono
e só ao acordar pudesse deitar. Ar vivo!

É enorme encontrar!

Disse-me um dia que, ao inspirar os dias e as coisas,
a sua amiga entrara na demora completa, para nela ficar
até ao sacro momento de todas sair. Sim, o que me dá norte.
E neste todo lirismo encantado, sonho de-lírio em-cantar,
danço pelo caminho que me abre
até que a expiração surja vinda de uma lonjura
rica por todas as sensações.
Sagrado deitar.

Abres-me e nem sabes como.
E assim voltam num florir que me escorre da boca
com pétalas de veludo; todas as coisas, e os dias, nesta hera
lidos como no voo do pássaro solto. Parecem querer ir ter contigo.
Umbigo do mundo d’acesso divino,
diverso escorrido livre como o vento.
Comovente.

E num contínuo real tudo se ergue de novo
como num dia cheio de perfumes desejáveis.

Quero cheirar-te para sempre!
Quero florir-te para sempre!
Quero mergulhar-te-me-te continuamente..., e largar todos os laços,
todas as amarras, e ditos e palavras,
avançar pelo tempo.
Contigo-me-te-migo-tu florir-te-me-nos.

Oxalá,
numa barca d'infinita viagem,
largo a ressoar para nunca mais perder
o que enorme foi encontrar. E digo-te,
sabedoria das alturas, a tua filha sabe cantar.

"Pois cada um dos Celestiais quer sacrifícios.
E se algum for omitido,
Nada de bom acontece."

É enorme cantar!
É enorme dançar!

E essa dureza d’acesso à vida, doce
que por ver-te rodar se eleva exultando e grita cores vivas,
é o rito profundo lar que se estende para erguer, nosso olhar,
que se há palavras: só podem ser estas
a fazer-te justiça.

E assim solta-s’o pião que o todo sabe e ensina,
torneando luz fina d’amar danço,
continuamente contigo,

não se esgota o canto
no trilho de um sorriso. Altíssimo da bênção d’altar
que vindo ao lar, escorre ainda as águas.
Cristalinas áureas rosáceas do santo perfume,
menino veloso lido da luz,

és tu que me tiras da cruz;
és tu que me dás de novo, e novo,
e novo despontar.

Inspira junto comigo
esta nova maneira do acordar.


Contínuo Real

13-11-2005

Das folhas



















Borba 2005


O espaço do tempo
não percorrido, estendido
como único do que penso:
laranjas quase vermelhas
de — pressente
pelas árvores adentro,
pela luz arriscada das folhas,

fotossíntese

vinda;
plena d’energia única
no lugar do não-pensamento
perdurado. Prazer
d’infinito.


28-12-1997

23 julho 2007

Canto à Natureza










Sintra 2006

Euch ruf ich über das Gefild herein
Vom langsamen Gewölk ihr heißen Strahlen
Des Mittags, ihr Gereiftesten, daß ich
An euch den neuen Lebenstag erkenne.
Denn anders ists wie sonst! vorbei, vorbei
Das menschliche Bekümmernis! als wüchsen
Mir Schwingen an, so ist mir wohl und leicht
Hier oben, hier, und reich genug und froh
Und herrlich wohn’ ich, wo den Feuerkelch
Mit Geist gefüllt bis an den Rand, bekränzt
Mit Blumen, die er selber sich erzog
Gastfreundlich mir der Vater Ätna beut.
Und wenn das unterirdische Gewitter
Itzt festlich auferwacht zum Wolkensitz
Des nahverwandten Donnerers hinauf
Zur Freude fliegt, da wächst das Herz mir auch,
Mit Alden sing ich hier Naturgesang.

(...)

A vós convosco, ó raios quentes do meio-dia
Perfeitamente maduros, para que desçais das
Lentas nuvens e, passando por cima dos campos
Até junto de mim, eu possa em vós reconhecer o novo dia de vida.
Pois tudo é diferente de outrora! Passou, passou
A humana aflição! Como se
Me nascessem asas, sinto-me bem leve
Aqui em cima, aqui, e suficientemente rico e alegre
E magnificamente habito onde o cálice de fogo
Está repleto de espírito até à borda, coroado
Com flores, que para ele criou
E me oferece, hospitaleiro, o Pai Etna.
E quando a trovoada subterrânea
Agora acorda festivamente para voar
Com alegria até ao trono das nuvens
Do aparentado deus Tonante, também se dilata o meu coração,
Erguendo aqui, com as águias, o meu canto à Natureza.
(...)


Primeiro acto da terceira versão

Hölderlin, A morte de Empédocles, Lisboa, Relógio D’Água, 2001.

Fingindo conhecer













Pois bem, vamos a ver se consigo exprimir com mais clareza o meu pensamento. Digo que há duas realidades diferentes a que correspondem duas artes: à arte que se refere à alma chamo política; à que se refere ao corpo não posso atribuir uma designação só, mas, embora a cultura do corpo constitua uma unidade, distingo nela duas partes, a ginástica e a medicina. O que na política corresponde à ginástica é a legislação, o que nela corresponde à medicina é a justiça. Há, portanto, dois grupos de artes que se definem pelo seu objecto, de um lado a medicina e a ginástica, do outro a justiça e a legislação. Mas os elementos de cada grupo acusam também diferenças entre si.
Da existência destas quatro artes, que visam o maior bem do corpo ou da alma, se apercebeu a adulação, não por meio de um conhecimento raciocinado, mas por via da conjectura, e, dividindo-se então em quatro partes e insinuando cada uma delas sob a arte correspondente, fez-se passar pela arte cujo disfarce adoptou. Não tem o mínimo interesse em procurar o que seja o melhor, mas, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimo valor. É assim que a cozinha toma a aparência da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que, se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, médico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer à fome.
A isto chamo eu adulação, que considero uma coisa vergonhosa, Polo (é a ti que neste momento me dirijo), porque visa o agradável sem a preocupação do melhor. E sustento que ela não é uma arte, mas uma actividade empírica, porque não tem na sua base um princípio racional que permita justificar as várias formas do seu procedimento no que respeita à natureza e às suas causas. Ora, eu não chamo arte a uma actividade que não esteja fundada na razão. Se tens algo a objectar ao que afirmo, estou pronto a fornecer explicações suplementares.
Portanto, repito, a cozinha é a adulação disfarçada de medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e do vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descuram a beleza natural, proporcionada pela ginástica.
Resumindo, dir-te-ei, em linguagem matemática (talvez assim me compreendas melhor), que a toilette está para a ginástica como a sofistica está para a legislação, e a cozinha para a medicina como a retórica para a justiça. Estas actividades, já o disse, distinguem-se pela sua natureza. Dada, porém, a estreita relação que existe entre elas, sofistas e oradores confundem-se, ao realizar o seu trabalho no mesmo domínio, sobre os mesmos assuntos, sem conhecerem exactamente a natureza das suas funções e com idêntica ignorância a seu respeito por parte dos outros homens. Efectivamente, se, em vez de ser a alma a comandar o corpo, fosse este a comandar-se a si próprio; se a alma não submetesse a realidade à sua apreciação, distinguindo a cozinha da medicina, e fosse o corpo a fazer essa distinção, com base apenas no critério do prazer que retira destas coisas, então, meu caro Polo, teriam aqui inteira aplicação aquelas palavras de Anaxágoras que tu conheces muito bem: «Todas as coisas se misturariam e confundiriam», e a medicina e a saúde não se distinguiriam da cozinha.
Sabes agora o que entendo por retórica: ela é em elação à alma aquilo que a cozinha é em relação ao corpo. Foi talvez um procedimento estranho o meu, de te proibir os longos discursos para depois me espraiar tão longamente, mas tenho para isto uma desculpa: enquanto te falei concisamente, não me entendeste bem nem foste capaz de aproveitar nada das respostas que te dei; estavas sempre a pedir explicações. Se, pela minha parte, as tuas respostas também me parecerem insuficientes, alarga também tu o teu discurso; caso contrário, deixa as coisas como estiverem, que assim é que é bom. E agora vê se te satisfaz a minha resposta.

Platão, Górgeas, trad. Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 1997.

Áureos
























Pharol da Barra
Postal de 1920s.

























Barra 1994

Os tempos áureos,
vão sempre sendo
mais áureos,
enquanto vão
áureos existindo.

28-04-2001

21 julho 2007

É tempo que a pedra se decida a florir




















Sem Título
Carlos Relvas, 1865.
Colódio, 29 x 36,4.
Colecção particular.

Aus der Hand frißt der Herbst mir sein Blatt: wir sind Freunde.
Wir schälen die Zeit aus den Nüssen und lehren sie ghen:
die Zeit kehrt zurück in die Schale.

Im Spiegel ist Sonntag,
im Traum wird geschalfen,
der Mund redet wahr.

Mein Aug steigt hinab zum Geschlecht der Geliebten:
wir sehen uns an,
wir sagen uns Dunkles,
wir lieben einander wie Mohn und Gedächtnis,
wir schlafen wie Wein in den Muscheln,
wie das Meer im Blutstrahl des Mondes.

Wir stehen umschlungen im Fenster, sie sehen uns zu von der Straße:
es ist Zeit, daß man weiß!
Es ist Zeit, daß der Stein sich zu blühen bequemt,
daß der Unrast ein Herz schlägt.
Es ist Zeit, daß es Zeit wird.

Es ist Zeit.

O Outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.

No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.

O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.

Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.

É tempo.


Corona
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

Der Dorn















































Borba 2005


Stille! Ich treibe den Dorn in dein Herz,
denn die Rose, die Rose
steht mit den Schatten in Spiegel, sie blutet!
Sie blutet schon, als wir mischten das Ja und das Nein,
als wirs schlürften,
weil ein Glas, das vom Tisch sprang, erklirrte:
es läutete ein eine Nacht, die finsterte länger als wir.

Wir tranken mit gierigen Mündern:
es schmeckte wie
Galle,
doch schäumt’ es wie Wein —
Ich folgte dem Strahl deiner Augen,
und die Zunge lallte uns Süße…
(So lallt sie, so lallt sie noch immer.)

Stille! Der Dorn dringt dir tiefer ins Herz:
er steht im Bund mit der Rose.

Silêncio! Enterro o espinho no teu coração,
porque a rosa, a rosa
está com as sombras no espelho e sangra!
Já sangrava, quando nós misturámos o Sim e o Não,
quando os bebemos,
porque um copo, que caiu da mesa, tilintou:
repicou numa noite que escureceu durante mais tempo do que nós.

Bebemos com bocas ávidas:
sabia a fel,
no entanto espumava como vinho —
Eu segui o brilho dos teus olhos
e a língua balbuciou doçuras…
(E balbucia, balbucia ainda.)

Silêncio! O espinho penetra-te mais fundo no coração:
está unido com a Rosa.

Silêncio!
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

19 julho 2007

O que segura o lótus
























Avalokiteshvara
Tibete, Nepal ou Butão.
Tangka, pigmento sobre seda (kesi).

(…)

DL — (…) Os chefes religiosos, aqui e ali, proclamam alto e bom som que ocupam este terreno espiritual, que é seu apanágio. No seu entender, se alguém rejeita a religião, rejeita ao mesmo tempo toda a experiência espiritual.

JCC — O que é perfeitamente abusivo. Porque estaria a vida espiritual necessariamente ligada a qualquer crença sobrenatural? Poderíamos quase dizer o contrário, que a fé é o abandono do espírito.

DL — Realmente poder-se-ia dizer isso. Mas não procuro desviar ninguém da sua fé, se ela for praticada com tolerância. Veja-se, entretanto, aonde pode conduzir a confusão entre o religioso e o espiritual: imaginemos um homem que fala da noção de benevolência ou de perdão, ou ainda de compaixão, esta atitude, bem o sabe, é um dos fundamentos do budismo. Um outro homem, que não tem qualquer preocupação de ordem religiosa, escuta o primeiro e diz encolhendo os ombros: isso não passa de religião, não estou interessado.

JCC — Faz mal, naturalmente.

DL — É evidente! Caiu numa armadilha grosseira de vocabulário! As palavras «compaixão» ou «caridade» cegaram-no. Ora, trata-se de qualidades humanas, puramente humanas. Não tivemos necessidade de uma revelação divina para as adquirir ou descobrir. (…)

(…)

JCC — O Ocidente interrogou-se longamente sobre esta pretensa liberdade. Não somos comandados pelo meio em que nascemos, pelas crenças que nos envolvem, pela nossa infância, por todos os elementos mais ou menos claros que nos compõem?

DL — É evidente. Daí a dificuldade dessa tarefa. Mas posso dizer que num certo nível de reflexão, o homem teve sempre a escolha. Ele pode adquirir esta liberdade, libertar-se de tudo o que o bloqueia. E deve fazê-lo. Disse um dia que tanto quanto me parece, Deus se deixou dormir algures. Como deve perceber, estava a brincar, pois não levamos em conta a existência de um Deus criador. Mas se é verdade que Deus adormeceu, cabe-nos a nós acordá-lo.

(…)

JCC — Pode também sobreviver-se sem religião?

DL — Naturalmente. (…) Tudo parte de nós. De cada um de nós. As qualidades indispensáveis são a paz de espírito e a compaixão. Sem elas, nem vale a pena tentar. Essas qualidades não só são indispensáveis, como também inevitáveis. Como já lhe disse, encontramo-las em nós se nos dermos ao trabalho de as procurar. Podemos rejeitar toda a forma de religião, mas não podemos rejeitar fora de nós a compaixão e a paz de espírito.

(…)


Dalai Lama & Jean-Claude Carrière, A Força do Budismo, Lisboa, Difusão Cultural, 1995.

O vento que te empurra
























Árvores de Outono
Egon Schiele, 1911.
Óleo sobre tela, 79,5 x 80 cm.
Colecção particular.



Mit wechselndem Schlüssel
schließt du das Haus auf, darin
der Schnee des Verschwiegenen treibt.
Je nach dem Blut, das dir quillt
aus Aug oder Mund oder Ohr,
wechselt dein Schlüssel.

Wechselt dein Schlüssel, wechselt das Wort,
das treiben darf mit den Flocken.
Je nach dem Wind, der dich fortstößt,
ballt um das Wort sich der Schnee.

Com chave mutável
abres a casa em que
vagueia a neve daquele que foi silenciado.
Conforme o sangue que te brota
dos olhos, da boca ou dos ouvidos,
muda a tua chave.

Muda a tua chave, muda a palavra
que pode vaguear com os flocos.
Conforme o vento que te empurra
assim aumenta a neve em torno da palavra.

Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

18 julho 2007

Agenciamento
























Current
Bridget Riley, 1964.
Acrílico em quadro, 58 x 58 cm.
Museum of Modern Art, Nova York.


Só se sai efectivamente dos dualismos deslocando-os como se de um fardo se tratasse, e quando se encontra entre os termos, quer sejam dois ou mais, um desfiladeiro estreito como uma passagem ou uma fronteira que vai fazer do conjunto uma multiplicidade, independentemente do número de partes. Aquilo a que chamamos um agenciamento é precisamente uma multiplicidade.


Giles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos, Lisboa, Relógio D'Água, 2000.

17 julho 2007

Uma encruzilhada

















Pearblossom Highway
David Hockney, 1986.
Impressões cromogénicas montadas
em painel favo de mel, 198 x 282 cm.
Getty Museum, Malibu.


Uma encruzilhada,
à frente.

Mil corredores com
mil portas cada.
E em cada porta,
mil quartos e
mil armários com
mil gavetas.

Dentro de cada gaveta há:
mil mundos diversos
por sorver.


1996

12 julho 2007

Estar a caminho












Sintra 2006


E seja o que for, que ainda me espere como destino e experiência, há-de incluir alguma caminhada e alguma subida de montanhas: na sua vivência, afinal, uma pessoa apenas se repete a si própria.

Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, Lisboa, Relógio D’Água, 1998.

«Vais conseguir!»

10 julho 2007

Ahimsa
































God is truth
the way to truth
lies through
ahimsa
(non violence)

Sabarmati
13-3-1927 M.K.Gandhi

Deus é a verdade,
o caminho para a verdade
encontra-se através da ahimsa
(não-violência)

trad. nossa
Peter Rühe, Gandhi, London, Phaidon, 2001.


(…)
A minha experiência constante convenceu-me de que não há outro Deus senão a verdade. E se todas as páginas deste capítulo não proclamarem ao leitor que o único meio para a realização da verdade é a Ahimsa, devo concluir que todo o meu trabalho de escrevê-las foi em vão. E, mesmo que os meus esforços nesse sentido sejam infrutíferos, quero que os leitores saibam que foi o veículo, e não o grande princípio, que falhou. Depois de tudo, por mais sinceras que tenham sido as minhas buscas da Ahimsa, elas não deixaram de ser imperfeitas e inadequadas. Os pequenos vislumbres que possa ter tido da verdade dificilmente podem exprimir o seu brilho indescritível, que é um milhão de vezes mais intenso que o do Sol, que vemos diariamente com os nossos olhos. Com efeito, o que consegui perceber foi apenas o que há de mais fraco e trémulo nessa poderosa fulgurância. Mas posso assegurar que, como resultado das minhas experiências, uma perfeita compreensão da Verdade só pode resultar da completa percepção da Ahimsa.

Mohandas K. Gandhi, A Minha Vida e as Minhas Experiências com a Verdade, Lisboa, Bizâncio, 2006.


Fotografia de Peter Rühe

i-wa-ka




































Acorda. Brandindo archotes nas mãos,
aproxima-te, Iaco, Oh Iaco,
astro que traz a luz da festa nocturna.
Brilha de archotes o prado.
Treme o joelho dos velhos
e sob a dança sagrada, varrem os cuidados
e os anos longos de suas idades antigas.
E tu, brilhando com a tua tocha,
faz avançar aqui
para o prado florido e húmido,
oh bem aventurado,
a juventude que forma os teus corpos.


Aristófanes, As Rãs, trad. Américo da Costa Ramalho, Lisboa, Edições 70, 1996.


Fotografia da NASA pelo HST

09 julho 2007

Ströme

























Herzzeit, es stehn
die Geträumten für
die Mitternachtsziffer.

Einiges sprach in die Stille, einiges schwieg,
einiges ging seiner Wege.
Verbannt und Verloren
waren daheim.

Ihr Dome.

Ihr Domo ungesehn,
ihr Ströme unbelauscht,
ihr Uhren tief in uns.

Tempo do coração, erguem-se
os que sonhámos em vez
dos mostradores da meia-noite.

Havia quem falasse, quem se calasse,
quem seguisse o seu caminho.
Banidos e perdidos
estavam em casa.

Vós, catedrais!

Vós, catedrais não vistas,
vós, rios não escutados,
vós, relógios no fundo de nós.

Colónia, Am Hof
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. João Barrento, Lisboa, Cotovia, 2006.


Postal de Saraswati do National Card Centre Simplex BLDG

Até ao mais profundo




















(...)
Nunca me conformei com um conceito puramente científico da existência, ou aritemético-geométrico, quantitativo-extensivo. A existência não cabe numa balança ou entre os ponteiros dum compasso. Pesar e medir é muito pouco; e esse pouco é ainda uma ilusão. O pesado é feito de imponderáveis, e a extensão de pontos inextensos, como a vida é feita de mortes. A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa, nem electromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atómico perdido no infinitamente pequeno, ou da nebulosa Andrómeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia!
A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão. Esta apenas descobre um simples jogo de forças repetido ou modificado lentamente, gestos insubstanciais, formas ocas, a casca de um fruto proibido.
Mas o miolo é do poeta. Só ele saboreia a vida até ao mais íntimo do seu gosto amargoso, e se embrenha nela até ao mais profundo das suas sensações e sentimentos. É o ser interior a tudo. (...)

Teixeira de Pascoaes, Homem Universal, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.



Pintura digital para a NASA por Adolf Schaller

07 julho 2007

Ensinamento

















Lisboa 1990


Do que você precisa, acima de tudo, é de não se lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por si; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de não se conformarem.

Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Estarreja, Ulmeiro, 1990.

05 julho 2007

Pela natureza



















Lisboa 2005


(…) em qualquer operação das artes, onde há um fim a ser atingido, os estádios iniciais e sucessivos da operação são desempenhadas pelo propósito da realização desse fim. Agora, quando uma coisa é produzida pela natureza, os estádios iniciais em todo caso levam ao desenvolvimento final da mesma maneira como na operação das artes, e vice-versa, contando que nenhum impedimento trave o processo. (…)

Tradução do Inglês nossa

Aristotle, Physics, trad. P.H.Wiicksteed & F.M.Cornford, London, Loeb, 1980.

Por onde vieste



















Borba 2005


Abend der Worte — Rutengänger im Stillen!
Ein Schritt und noch einer,
ein dritter, des Spur
dein Schatten nicht tilgt:

die Narbe der Zeit
tut sich auf
und setzt
das Land unter Blut —
Die Doggen der Wortnacht, die Doggen
schlagen nun an
mitten in dir:
sie feiern den wilderen Durst,
den wideren Hunger…

Ein letzter Mond springt dir bei:
Einen langen silbernen Knochen
— nackt wie der Weg, den du kamst —
wirft er unter die Meute,
doch rettets dich nicht:
der Strahl, den du wecktest,
achäumt näher heran,
und obenauf schwimmt eine Frucht,
in die du vor Jahren gebissen.


Noite das palavras — verdor no silêncio!
Um passo e outro ainda,
um terceiro, cujo vestígio
a tua sombra não apaga:

a cicatriz do tempo
abre-se
e afoga a terra em sangue —
Os dogues da noite das palavras, os dogues
atacam agora
bem dentro de ti:
celebram a mais selvagem sede,
a mais selvagem fome…

Acode-te uma última lua:
lança um longo osso argênteo
— nu como o caminho por onde vieste —
para o meio da turba,
mas isso não te salva:
o jacto que despertaste
já vem vindo, espumando,
e sustentando ao alto um fruto
que há anos mordeste.


Noite das Palavras
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. João Barrento, Lisboa, Cotovia, 2006.

03 julho 2007

Chenrezig
























Sadaksari Avalokitesvara
Nepal ou Tiebete, entre séc. XIII e séc. XIV.
Cobre dourado, 17,5 cm.
Colecção privada, E.U.A.













Om Mani Padme Hum
…..Om………….Joia………………..Lotus………….. como Om
……………….……..… ….compaixão.…… …..….…….sabedoria

Sagrado coração de diamante.


Tradução da Escola Ogyen Kunzang Choling de Lisboa

A mão à porta
























Marrocos 2002

Nicht am meinen Lippen suche deinen Mund,
nicht vorm Tor den Fremdling,
nicht im Aug die Träne.

Sieben Nächt höher wandert Rot zu Rot,
sieben Herzen tiefer pocht die Hand ans Tor,
sieben Rosen später rauscht der Brunnen.

Não busques nos meus lábios a tua boca,
nem diante do portão o forasteiro,
nem no olho a lágrima.

Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,
sete corações mais fundo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

Cristal
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

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