Que o amigo seja para vós a festa da terra

26 março 2007

Do conceito











Wikipedia













"(...) quanto mais a filosofia esbarra com rivais despudorados e tolos, quanto mais os encontra no seu próprio seio, maior é o seu entusiasmo em cumprir a tarefa, criar conceitos, que são aerólitos mais do que mercadorias. Solta gargalhadas incontroláveis que lhe secam as lágrimas. Assim, pois, a questão da filosofia é o ponto singular em que o conceito e a criação se relacionam entre si.

Os filósofos não se ocuparam suficientemente da natureza do conceito como realidade filosófica. Preferiram considerá-lo como um dado conhecimento ou uma dada representação, que se explicariam por faculdades capazes de o formar (abstracção ou generalização) ou de o utilizar (juízo). Mas o conceito não é dado, é criado, tem de ser criado; não está formado, ele põe-se a si próprio, auto-posicionamento. As duas coisas implicam-se, porque aquilo que é verdadeiramente criado, desde o ser vivo à obra de arte, goza por isso mesmo de uma autoposição de si, ou de um carácter autopoiético graças ao qual é reconhecível. Quanto mais o conceito é criado, mais ele se põe. O que depende de uma livre actividade criativa é também o que se põe a si próprio, independente e necessariamente: o mais subjectivo será o mais objectivo. Foram os pós-kantianos que prestaram maior atenção neste sentido ao conceito como realidade filosófica, nomeadamente Schelling e Hegel. Hegel definiu poderosamente o conceito pelas figuras da sua criação e pelos momentos da sua autoposição: as figuras tornaram-se pertença do conceito, porque constituem o lado sob o qual o conceito é criado pela e na consciência, através da sucessão dos espíritos, enquanto os momentos edificam o outro lado segundo o qual o conceito se põe a si próprio e reúne os espíritos no absoluto de si. Hegel mostrava assim que o conceito nada tem a ver com uma ideia geral ou abstracta, nem com uma Sabedoria incriada que não dependesse da própria filosofia. Mas fazia-o à custa de uma extensão indeterminada da filosofia que quase não deixava subsistir o movimento independente das ciências e das artes, porque reconstituía universais com os seus próprios momentos e tratava apenas como figurantes fantasmas as personagens da sua criação. Os pós-kantianos andavam à volta de uma enciclopédia universal do conceito, que remetia a criação deste para uma pura subjectividade, em vez de se dedicarem a uma tarefa mais modesta, uma pedagogia do conceito, que tivesse de analisar as condições de criação como factores de momentos que permaneciam singulares*. Se as três idades do conceito são a enciclopédia, a pedagogia e a formação profissional comercial, só a segunda nos pode impedir de cair nos píncaros da primeira até ao desastre absoluto da terceira, desastre absoluto para o pensamento, sejam quais forem evidentemente os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal."


* Sob uma forma intencionalmente escolar, Frédéric Cossutta propôs uma pedagogia do conceito muito interessante: Élements pour la lecture des textes philosophiques, Ed. Bordas.

Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia?, Lisboa, Presença, 1992.
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