Boas Festas
Creatio Universi
Johann Jakob Scheuchzer, 1731.
Primeira ilustração da bíblia
ilustrada Physica Sacra.
"No princípio deus criou os céus e a Terra."
I. Os onze céus
II. Sistema Tychoneano
III. Sistema semi-Tychoneano
IV. O Sol e os seus sete filhos
V. Corpos celestes
VI. Esfera armilar
VII. Astrolábio
(…) Mas todas estas posições não constituem as figuras de um Eu primordial do qual derivaria o enunciado: pelo contrário, elas derivam do próprio enunciado e são, a esse título, os modos de uma ‘não-pessoa’ (…)
(…) O mesmo se dirá dos objectos e dos conceitos do enunciado. É suposto uma proposição ter um referente. Quer isto dizer que a referência ou a intencionalidade é uma constante intrínseca da proposição, enquanto que o estado de coisas que vem (ou não) preenchê-la é uma variável extrínseca. Mas não se passa o mesmo com o enunciado: este tem um ‘objecto discursivo’ que não consiste, de modo nenhum, num estado de coisas visado mas, pelo contrário, deriva do próprio enunciado. É um objecto derivado que se define, precisamente, no limite das linhas de variação do enunciado enquanto função primitiva. Assim, de nada serve distinguirem-se tipos de intencionalidade diferentes, de entre os quais uns possam ser preenchidos por estados de coisas e outros permaneçam vazios, sendo então fictícios ou imaginários de uma maneira geral (encontrei um unicórnio) ou mesmo absurdos de uma maneira geral (um círculo quadrado). (…) Finalmente, a mesma conclusão é válida para os conceitos: uma palavra tem sem dúvida um conceito como significado, quer dizer, como variável extrínseca à qual se reporta por virtude dos seus significantes (constante intrínseca). Mas, ainda aqui, o mesmo já não sucede com o enunciado. Este possui os seus conceitos, ou antes, os seus ‘esquemas’ discursivos próprios, no lugar de entrecruzamento dos sistemas heterogéneos pelos quais passa enquanto função primitiva (…)
(…) Se os enunciados se distinguem das palavras, das frases ou das proposições, é porque eles compreendem em si, como suas ‘derivadas’, as funções de sujeito, as funções de objecto e as funções de conceito. Mais precisamente, sujeito, objecto e conceito não são senão funções derivadas da primitiva, ou do enunciado. Tanto assim, que o espaço correlativo é a ordem discursiva dos lugares ou posições de sujeitos, objectos e conceitos numa família de enunciados. (…)
(…) Eis aquilo que um grupo de enunciados é e aquilo que é, já, um enunciado sozinho: Multiplicidade. (…) O essencial da noção é, no entanto, a constituição de um substantivo de modo a que ‘múltiplo’ deixe de ser um predicado oponível ao Um, ou atribuível a um sujeito referenciado como uno. A multiplicidade mantém-se totalmente indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do uno, e sobretudo ao problema de um sujeito que a condicionaria, a pensaria, a faria derivar de uma origem, etc. Não há uno nem há múltiplo, o que, de todas as maneiras, seria remeter para uma consciência que se retomaria no uno e se desenvolveria no outro. Apenas há multiplicidades raras, com pontos singulares, com lugares vazios para aqueles que por instantes vêm aí funcionar como sujeitos, com regularidades cumuláveis, repetíveis e que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem é tipológica, ela é topológica. (…)
Primitive Blaze
Bridget Riley, 1963-64.
Emulsão sobre placa, 94,5 x 94,5.
Sotheby's, Londres.
(…) — “que significa pensar? A que se chama pensar?” — (…)
Em seguida, em função do poder enquanto problema, pensar é emitir singularidades, é lançar os dados. Aquilo que o lance de dados exprime, é que pensar provém sempre do de-fora (desse de-fora que já se precipitava no interstício ou constituía o limite comum). Pensar não é nem inato nem adquirido. Não é o exercício inato de uma faculdade, mas não é também um learning que se constitui no mundo exterior. (…) a genitalidade do pensamento enquanto tal, um pensamento que vem de um de-fora mais longínquo que todo e qualquer mundo exterior, e portanto mais próximo que todo e qualquer mundo interior. Será necessário chamar Acaso a esse de-fora? (...)
1597
Janne Kittänen, 2007.
Poliamida aglomerada a laser, 16 x ∅ 50 cm.
Candeeiro de série da Fredom of Creation.
(…) Um enunciado representa sempre uma emissão de singularidades, de pontos singulares que se distribuem num espaço correspondente. (…) Por maioria de razão, num espaço considerado pouco importa que uma emissão se faça pela primeira vez ou seja antes uma retoma, uma reprodução. O que conta é a regularidade do enunciado: não uma regularidade média, mas uma curva. Com efeito, o enunciado não se confunde com a emissão de singularidades que ele pressupõe, mas com a configuração da curva que passa na vizinhança daquelas e, mais geralmente, com as regras do campo onde elas se distribuem e se reproduzem. (…)
L'Origine del Mondo
Constantin Brancusi, 1920.
Metal e pedra, 76,2 x 50,8 x 50,8.
Dallas Museum of Art.
Bei Brancusi, Zu Zweit
Wenn dieser Steine einer
verlauten ließe,
was ihn verschweigt:
hier, nahebei,
am Humpelstock dieses Alten,
tät es sich auf, als Wunde,
in die du zu tauchen hättst,
einsam,
fern meinem Schrei, dem schon mit-
behauenen, weißen.
Com Brancusi, a Dois
Se destas pedras uma
anunciasse
o que a faz silêncio:
aqui, muito perto,
na bengala deste velho,
isso se abriria, como ferida
em que terias de mergulhar,
solitário,
longe do meu grito, ele também já
talhado pelo cinzel, branco.
Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, trad. J.Barrento, Lisboa, Cotovia, 1996.
Atlântico 2004
Abglanzbeladen, bei den
Himmelskäfern,
im Berg.
Den Tod,
den du mir schuldig bliebst, ich
trag ihn
aus.
Carregado de brilhos, entre
os escaravelhos do céu,
na montanha.
A morte
que me ficaste a dever, eu
carrego-a
até ao fim.
Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, trad. J.Barrento, Lisboa, Cotovia, 1996.
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Categorias * §, arte, fotografia, poesia
Os leitores que se tornaram assíduos do Skapsis sabem que aqui não é comum anunciar espectáculos por vir ou em cena, mas desta vez teve de abrir-se uma excepção. Ontem tive a oportunidade de assistir ao inesperado desempenho de um excelente artista Japonês, integrado no festival Temps d'Images. Hiroaki Umeda volta ao palco hoje pelas 21h30 na Culturgest.
Este coreógrafo começou por estudar fotografia para depois se voltar para a dança. «A dança é a tempo real.» Disse ontem aos espectadores que o foram ouvir depois, como justificação para esta mudança de disciplinas. Contudo, não ouve propriamente uma mudança de disciplinas mas uma modificação na abrangência das disciplinas. Hiroaki estudou fotografia (desenho da luz) e dança (desenho do corpo) por pouco tempo, e cedo se tornou autodidata — também nos confidenciou. Mas nestas duas peças em exibição, While Going to a Condition e Finore, o artista também concebeu a banda sonora. O resultado é de uma impressionante fluidez com altíssima qualidade. Disse-nos ainda que o desenho da luz e do som (hipnótico e industrial) não é menos importante que o do seu corpo, um objecto em movimento, insignificante como qualquer movimento, completamente integrado no conjunto.
Corpo, luz e som, numa coreografia de sincronias rítmicas complexas que dificilmente podem ser descritas sem cair nos tecnicismos de uma linguagem incompreensível. Embora se possa fazer alguma descrição da luz e do som, a coreografia corporal que Hiroaki dança tem de ser experimentada ao vivo, razão pela qual não se apresenta aqui mais que uma imagem da primeira peça.
A não perder!
Fotografia de F.Villemin
Shirin
Bridget Reiley, 1984.
Óleo sobre tela, 171,5 x 140,8 cm.
Galeria Nicole Schlégl, 2007.
Match-Point
Alexandre Bobone, 2007.
Metal e bolas de ténis, 28 cm.
Candeeiro de série da Bigornalouca.
Prazeres públicos/ sacrifícios privados (pormenor),
da série Natura naturata - Natura naturans.
Susana Piteira em co-autoria com Rietske van Reey, 2004.
Instalação multimédia, pedra, DVD, som e luz, ∅ 2 m.
Em exposição até 19 de Outubro na galeria
Artes Solar Sto. António.
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Categorias * arte, cinema, escultura, instalação
(...) Mas, o difícil é a interpretação destas palavras: eterno retorno do Mesmo. Porque não está aí suposta nenhuma forma de identidade, e porque cada eu dissolvido não volta a passar por si a não ser ao passar pelos outros, ou não se quer a si mesmo a não ser por meio das séries de papéis que não são ele. A intensidade, sendo desde logo diferença em si, abre-se em séries disjuntivas, divergentes. Mas, precisamente, por não estarem as séries submetidas à condição da identidade de um conceito em geral, bem como não está submetida à identidade de um eu como indivíduo a instância que as percorre, as disjunções permanecem disjunções, deixando a sua síntese de ser exclusiva ou negativa, para tomar, pelo contrário, um sentido afirmativo em que a instância móvel passa por todas as séries disjuntivas; numa palavra, a divergência e a disjunção como tais tornam-se objectos de afirmação. O verdadeiro sujeito do eterno retorno é a intensidade, a singularidade; daí a relação entre o eterno retorno como intencionalidade realizada e a vontade de poder como intensidade aberta. Ora, desde que a singularidade se apreenda como pré-individual, fora da identidade de um eu, quer dizer, enquanto fortuita, ela comunica com todas as outras singularidades, sem deixar de formar com elas disjunções, disjunções em que ela passa por todos os termos disjuntivos afirmando-os em simultâneo, em vez de os repartir em exclusões. (…)
(…) O que o eterno retorno expressa é este novo sentido da síntese disjuntiva — e nesse sentido o eterno retorno não se diz do Mesmo («ele destrói as identidades»). Pelo contrário, o eterno retorno é o único Mesmo, mas que se diz do que difere em si — do intenso, do desigual ou disjuntivo (vontade de poder). Ele é o todo, mas que se diz do que é desigual, a Necessidade, que se diz apenas do fortuito. É unívoco: ser, linguagem ou silêncio unívocos. Mas o ser unívoco diz-se de entes que não o são, a linguagem unívoca aplica-se a corpos que não o são, o silêncio «puro» rodeia palavras que não o são. Seria pois vã a procura da simplicidade de um círculo no eterno retorno, bem como a procura da convergência de séries em torno de um centro. Se círculo há, é o circulos vitiosus deus: aí, a diferença está no centro, e o circuito consiste na eterna passagem pelo meio das séries divergentes — circulo que é sempre descentrado por uma circunferência excêntrica. O eterno retorno é Coerência, mas é uma coerência que não deixa que subsista a minha, a do mundo e a de Deus. Também a repetição nietzschiana nada tem a ver com a kierkgaardiana, ou, mais geralmente, a repetição do eterno retorno nada tem a ver com a cristã. (…) Há uma diferença de natureza entre o que retorna «de uma vez por todas» e o que retorna para todas as vezes, uma infinidade de vezes. Do mesmo modo, o eterno retorno é o Todo, mas Todo que se diz dos membros disjuntivos ou das séries divergentes: não faz com que tudo retorne, faz com que nada retorne do que retorna uma só vez, nada retorne do que pretende recentrar o círculo, do que pretende tornar as séries convergentes, restaurar o eu, o mundo e Deus. Cristo não retornará no círculo de Diónisos, a ordem do anticristo afasta a outra. Tudo o que, fundado em Deus, faz da disjunção um uso negativo ou exclusivo, tudo isso é negado, tudo isso é excluído pelo eterno retorno. (...)
Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.
Perdida dos Homens
escorre, pelos dedos urdidos
nas unhas, cravada na pedra.
Raios de luz casada
nas frágeis gavetas fractais.
Sonhos cupidos
d’era p’los braços
as raízes das pernas.
Árvore ao vento que passa
suspensa do tamanho
sem fundo.
A Morte de Sócrates
Jacques-Louis David, 1787.
Óleo sobre tela, 129,5 x 196,2 cm.
The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
— Ao menos, Sócrates, não terei de censurar em ti o que censuro noutros, que se insurgem e me amaldiçoam quando, por imposição dos arcontes, lhes venho comunicar a ordem de beber o veneno… A ti, conheci-te bem durante este tempo: foste o homem mais generoso, mais aprazível e excelente de quantos por aqui passaram! Estou certo de que também agora não te insurgirás contra mim mas contra os verdadeiros culpados, que conheces bem! Agora… sabes o que vim anunciar-te. Adeus, e trata de aceitar da melhor forma a sorte inevitável.
E, chorando, voltou costas e afastou-se. Sócrates ficou ainda a olhá-lo:
— A ti também, adeus! Por minha parte farei como dizes — respondeu. E, voltando-se para nós, comentou: — Que amável, este homem! Durante todo este tempo não deixava de aqui vir, aqui ficava por vezes a conversar comigo. Excelente criatura e que generosas as suas lágrimas! Mas vamos, Críton, tratemos de obedecer-lhe; que me tragam o veneno, se já estiver preparado; se não, que o preparem.
E diz Críton: — Mas, salvo o erro, Sócrates, o Sol ainda está nas montanhas e não se pôs por enquanto! De resto, sei de outros que só o tomaram mesmo muito mais tarde e que, depois de a ordem lhes ser dada, ainda comeram e beberam a seu bel-prazer, alguns mesmo na companhia daqueles que mais desejavam. Vamos, não te apresses, que ainda há tempo.
Replicou-lhe ele: — É natural, Críton, que esses a quem te referes assim procedam: é que estão convencidos de que lucram com isso. Mas, por mim, é também natural que não proceda como eles, pois, estou convicto, nada lucraria em beber o veneno um pouco mais tarde, a não ser tornar-me ridículo aos meus próprios olhos, com esse apego a uma vida que já deu o que tinha a dar… Portanto — concluiu —, trata de obedecer-me e não procedas de outro modo.
Ouvindo isto, Críton fez sinal ao escravo que estava de pé. Este saiu e, decorrido ainda bastante tempo, voltou com o homem encarregado de lhe ministrar o veneno, que já vinha moído na taça. Ao vê-lo, Sócrates interpelou-o:
— Muito bem, meu caro: tu, que percebes destas coisas, diz lá: que é necessário fazer?
— Apenas — explicou — passear um pouco depois de beberes o veneno; quando sentires as pernas pesadas, deitas-te então, e o veneno actuará por si.
Ao mesmo tempo estendeu a taça a Sócrates. E com perfeito à-vontade, Equécrates, sem que a mão lhe vacilasse ou se alterasse a cor de rosto, pegou nela e, fixando no homem o seu habitual «olhar de touro», inquiriu:
— Que dizes, se me servir desta bebida para uma libação? É ou não lícito?
— Por nossa parte, Sócrates — respondeu —, preparamos a dose que achamos conveniente.
— Entendo — disse. — Mas, pelo menos, ser-me-á permitido, se é que não devo mesmo, dirigir uma prece aos deuses para que me tornem propícia esta viagem para o Além… Essa é pois a minha prece e oxalá assim seja!
E dizendo isto, segurando a taça com a mesma naturalidade e serenidade de espírito, despejou-a de um só trago. Nós, que de há algum tempo a essa parte ainda conseguíamos, mais ou menos, reter o pranto, quando o vimos beber até ao fim, não pudemos mais: a mim, pelo menos, as lágrimas corriam-me perdidamente, a ponto de esconder o rosto para chorar à vontade — não por ele, decerto, mas pela desgraça de ficar, eu, privado de um companheiro como este! Críton, ainda primeiro do que eu, incapaz de conter as lágrimas, levantou-se e saiu. Quanto a Apolodoro, que já antes não deixara de chorar, esse soltava rugidos tais, por entre lágrimas e lamentações, que, ao ouvi-lo, não havia ninguém a quem não se partisse o coração — exceptuando, naturalmente, o próprio Sócrates, que exclamou:
— Mas que é isto, meus caros?... Que estão a fazer? Eu, se mandei sair as mulheres, não foi por outro motivo — para que não perturbassem… Sempre ouvi dizer que se deve morrer em serenidade. Sosseguem e dominem-se!
Ouvindo isto, envergonhámo-nos e retivemos o pranto. Ele então deu uns passos em volta, até que disse sentir as pernas pesadas e se deitou de costas — tal como o homem prescrevera. Entretanto, o que lhe ministrara o veneno, palpando-lhe o corpo, observava-lhe de tempos a tempos os pés e as pernas. Em seguida, carregando com força num pé, perguntou-lhe se ainda sentia, ao que ele respondeu que não. Recomeçou depois pela parte inferior das pernas; e, assim subindo, nos fez ver que se tornava frio e hirto. Sem deixar de o palpar, observou-nos que, quando lhe atingisse o coração, seria o fim… E já praticamente toda a região do ventre estava gelada quando Sócrates, descobrindo o rosto — pois tinha-o, com efeito, coberto —, disse estas palavras, as últimas que proferiu:
— Críton, devemos um galo a Asclépio… Paguem-lhe, não se esqueçam!
(...)
Platão, Fédon, trad. Mª Teresa Schiappa de Azevedo, Coimbra, Minerva, 1998.
Es wird noch ein Aug sein,
ein fremdes, neben
dem unsern: stumm
unter steinernem Lid.
Kommt, bohrt euren Stollen!
Es wird eine Wimper sein,
einwärts gekehrt im Gestein,
von Ungeweintem verstählt,
die feinste der Spindeln.
Vor euch tut sie das Werk,
als gäb es, weil Stein ist, noch Brüder.
Haverá mais um olho,
estranho, junto ao
nosso: mudo
sob a pálpebra de pedra.
Vinde, cavai as vossas galerias!
Haverá uma pestana,
virada para dentro, na rocha,
temperada com lágrimas não choradas,
o mais fino dos fusos.
À vossa frente faz ela o trabalho,
como se houvesse, porque há pedra, ainda irmãos.
O Universo
Hildegard von Bingen, 1151.
Iluminura em manuscrito.
Liber Scivias, Rupertsberg Codex.
(…) Then I saw a huge object, round and shadowy. Like an egg it was pointed on top...Its surrounding layer was bright fire. Beneath this lay a dark skin. In the bright fire hovered a reddish, sparkling fireball. (…)
Hildegard von Bingen, Liber Scivias, Rupertsberg Codex .
Leo Delibes, Sylvia.
Coreografia de Frederik Ashton por Chistopher Newton
para a Metropolitan Opera House com Paloma Herrera
e o American Ballet Theatre, 2005.
Chi crederia che sotto umane forme
e sotto queste pastorali spoglie
fosse nascosto un Dio? (…)
Torquato Tasso, Aminta.
Italia, De Bibliotheca, 2005.
Du darfst
mit Schnee bewirten:
sooft ich Schulter an Schulter
mit dem Maulbeerbaum schritt durch den Sommer,
schrie sein jüngstes
Blatt.
Podes confiante
acolher-me com neve:
sempre que eu ombro a ombro
com a amoreira atravessava o verão,
gritava a sua mais jovem
folha.
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006
Sintra 1996
O verde dos bambus mais altos é azul
ou então é o céu que pousa nos seus ramos.
Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Lisboa, Fundação Eugénio de Andrade, 2005.
(...) Parece-nos em geral, a nós que manejamos a língua de forma empírica, que toda a literatura antiga é algo de artificial e de retórico, incluindo a literatura romana. Isso explica-se em última instância pelo facto de que a prosa própria da antiguidade é inteiramente um eco do discurso oral e formou-se segundo as suas leis, enquanto que a nossa prosa se explica cada vez mais através da escrita, a nossa estilística dá-se a ver apenas através da leitura. Mas o leitor e o auditor pedem cada um uma forma de exposição (Darstellung) absolutamente diferente e por essa razão a literatura da antiguidade soa-nos como «retórica»: quer dizer que se dirige antes de mais ao ouvido para o seduzir. Extraordinário desenvolvimento do sentido rítmico entre os Gregos e os Romanos, para quem escutar a palavra é ocasião de um formidável e continuado exercício. Ocorre aqui algo de semelhante à poesia — conhecemos os poetas «literários», os Gregos conheciam uma poesia autêntica sem a mediação do livro. Nós somos muito mais descoloridos e abstractos. (...)
Nietzsche, Da Retórica, Lisboa, Vega, 1995.
Der Stein.
Der Stein in der Luft, dem ich folgte.
Dein Aug, so blind wie der Stein.
Wir waren
Hände,
wir schöpften die Finsternis leer, wir fanden
das Wort, das den Sommer heraufkam:
Blume.
Blume — eins Blindenwort.
Dein Aug und mein Aug:
sie sorgen
für Wasser.
Wachstum.
Herzwand um Herzwand
blättert hinzu.
Ein Wort noch, wie dies, und die Hämmer
schwingen im Freien.
A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.
Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.
Flor — uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.
Crescimento.
Folha a folha acrescenta
as paredes do coração.
Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.
Flor
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.
Cloud Gate
Anish Kapoor, 2004.
(fotografia de James Morris).
Aço inox, 167,64 cm.
(…) É sob a forma de graus intensivos, ou quantidades intensivas, que os espíritos mortos têm uma «subsistência», uma vez perdida a «existência» ou a extensão do corpo. É sob essa forma que eles são singularidades, uma vez perdida a identidade do eu. As intensidades compreendem em si o desigual, ou o diferente, cada uma é desde logo diferença em si, ainda que na manifestação de uma qualquer todas estejam implicadas. (…) Singularidades pré-individuais e pessoais, esplendor do Impessoal, singularidades móveis e comunicantes que penetram umas nas outras pelo meio de uma infinidade de graus, de uma infinidade de modificações. Mundo fascinante onde a identidade do eu se perdeu, não em benefício da identidade do Uno ou da identidade do Todo, mas em proveito de uma multiplicidade intensa e de um poder de metamorfose, em que se jogam, uns nos outros, relações de poder. É o estado daquilo que deve ser chamado complicatio, contra a simplificatio cristã. (…)
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Definir é mentir
por comum acordo.
E se o que não acorda
não se chega a acordar,
foi por dar-se que acordou.
16-02-1999
«Não deveis tornardes
demasiado evidentes,
pois correis o risco de
penalizardes o mistério
das vossas relações.»
Quando
da necessidade
por pedagogia,
deveis tornar
à poesia.
09-12-2002
Menino veloso lido da luz,
tenho uma nova maneira do acordar.
O beijo que se desprende da imagem na claridade
de lençóis brancos dos teus baptismos. Sonho-te
continuamente
e acordo inspiradíssima,
como tendo unicamente inspirado durante o sono
e só ao acordar pudesse deitar. Ar vivo!
É enorme encontrar!
Disse-me um dia que, ao inspirar os dias e as coisas,
a sua amiga entrara na demora completa, para nela ficar
até ao sacro momento de todas sair. Sim, o que me dá norte.
E neste todo lirismo encantado, sonho de-lírio em-cantar,
danço pelo caminho que me abre
até que a expiração surja vinda de uma lonjura
rica por todas as sensações.
Sagrado deitar.
Abres-me e nem sabes como.
E assim voltam num florir que me escorre da boca
com pétalas de veludo; todas as coisas, e os dias, nesta hera
lidos como no voo do pássaro solto. Parecem querer ir ter contigo.
Umbigo do mundo d’acesso divino,
diverso escorrido livre como o vento.
Comovente.
E num contínuo real tudo se ergue de novo
como num dia cheio de perfumes desejáveis.
Quero cheirar-te para sempre!
Quero florir-te para sempre!
Quero mergulhar-te-me-te continuamente..., e largar todos os laços,
todas as amarras, e ditos e palavras,
avançar pelo tempo.
Contigo-me-te-migo-tu florir-te-me-nos.
Oxalá,
numa barca d'infinita viagem,
largo a ressoar para nunca mais perder
o que enorme foi encontrar. E digo-te,
sabedoria das alturas, a tua filha sabe cantar.
"Pois cada um dos Celestiais quer sacrifícios.
E se algum for omitido,
Nada de bom acontece."
É enorme cantar!
É enorme dançar!
E essa dureza d’acesso à vida, doce
que por ver-te rodar se eleva exultando e grita cores vivas,
é o rito profundo lar que se estende para erguer, nosso olhar,
que se há palavras: só podem ser estas
a fazer-te justiça.
E assim solta-s’o pião que o todo sabe e ensina,
torneando luz fina d’amar danço,
continuamente contigo,
não se esgota o canto
no trilho de um sorriso. Altíssimo da bênção d’altar
que vindo ao lar, escorre ainda as águas.
Cristalinas áureas rosáceas do santo perfume,
menino veloso lido da luz,
és tu que me tiras da cruz;
és tu que me dás de novo, e novo,
e novo despontar.
Inspira junto comigo
esta nova maneira do acordar.
Euch ruf ich über das Gefild herein
Vom langsamen Gewölk ihr heißen Strahlen
Des Mittags, ihr Gereiftesten, daß ich
An euch den neuen Lebenstag erkenne.
Denn anders ists wie sonst! vorbei, vorbei
Das menschliche Bekümmernis! als wüchsen
Mir Schwingen an, so ist mir wohl und leicht
Hier oben, hier, und reich genug und froh
Und herrlich wohn’ ich, wo den Feuerkelch
Mit Geist gefüllt bis an den Rand, bekränzt
Mit Blumen, die er selber sich erzog
Gastfreundlich mir der Vater Ätna beut.
Und wenn das unterirdische Gewitter
Itzt festlich auferwacht zum Wolkensitz
Des nahverwandten Donnerers hinauf
Zur Freude fliegt, da wächst das Herz mir auch,
Mit Alden sing ich hier Naturgesang.
(...)
A vós convosco, ó raios quentes do meio-dia
Perfeitamente maduros, para que desçais das
Lentas nuvens e, passando por cima dos campos
Até junto de mim, eu possa em vós reconhecer o novo dia de vida.
Pois tudo é diferente de outrora! Passou, passou
A humana aflição! Como se
Me nascessem asas, sinto-me bem leve
Aqui em cima, aqui, e suficientemente rico e alegre
E magnificamente habito onde o cálice de fogo
Está repleto de espírito até à borda, coroado
Com flores, que para ele criou
E me oferece, hospitaleiro, o Pai Etna.
E quando a trovoada subterrânea
Agora acorda festivamente para voar
Com alegria até ao trono das nuvens
Do aparentado deus Tonante, também se dilata o meu coração,
Erguendo aqui, com as águias, o meu canto à Natureza.
(...)
Primeiro acto da terceira versão
Hölderlin, A morte de Empédocles, Lisboa, Relógio D’Água, 2001.
Pharol da Barra
Postal de 1920s.
Barra 1994
Os tempos áureos,
vão sempre sendo
mais áureos,
enquanto vão
áureos existindo.
28-04-2001
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Sem Título
Carlos Relvas, 1865.
Colódio, 29 x 36,4.
Colecção particular.
Aus der Hand frißt der Herbst mir sein Blatt: wir sind Freunde.
Wir schälen die Zeit aus den Nüssen und lehren sie ghen:
die Zeit kehrt zurück in die Schale.
Im Spiegel ist Sonntag,
im Traum wird geschalfen,
der Mund redet wahr.
Mein Aug steigt hinab zum Geschlecht der Geliebten:
wir sehen uns an,
wir sagen uns Dunkles,
wir lieben einander wie Mohn und Gedächtnis,
wir schlafen wie Wein in den Muscheln,
wie das Meer im Blutstrahl des Mondes.
Wir stehen umschlungen im Fenster, sie sehen uns zu von der Straße:
es ist Zeit, daß man weiß!
Es ist Zeit, daß der Stein sich zu blühen bequemt,
daß der Unrast ein Herz schlägt.
Es ist Zeit, daß es Zeit wird.
Es ist Zeit.
O Outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo.
Corona
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.
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Borba 2005
Stille! Ich treibe den Dorn in dein Herz,
denn die Rose, die Rose
steht mit den Schatten in Spiegel, sie blutet!
Sie blutet schon, als wir mischten das Ja und das Nein,
als wirs schlürften,
weil ein Glas, das vom Tisch sprang, erklirrte:
es läutete ein eine Nacht, die finsterte länger als wir.
Wir tranken mit gierigen Mündern:
es schmeckte wie
doch schäumt’ es wie Wein —
Ich folgte dem Strahl deiner Augen,
und die Zunge lallte uns Süße…
(So lallt sie, so lallt sie noch immer.)
Stille! Der Dorn dringt dir tiefer ins Herz:
er steht im Bund mit der Rose.
Silêncio! Enterro o espinho no teu coração,
porque a rosa, a rosa
está com as sombras no espelho e sangra!
Já sangrava, quando nós misturámos o Sim e o Não,
quando os bebemos,
porque um copo, que caiu da mesa, tilintou:
repicou numa noite que escureceu durante mais tempo do que nós.
Bebemos com bocas ávidas:
sabia a fel,
no entanto espumava como vinho —
Eu segui o brilho dos teus olhos
e a língua balbuciou doçuras…
(E balbucia, balbucia ainda.)
Silêncio! O espinho penetra-te mais fundo no coração:
está unido com a Rosa.
Silêncio!
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.
Avalokiteshvara
Tibete, Nepal ou Butão.
Tangka, pigmento sobre seda (kesi).
(…)
DL — (…) Os chefes religiosos, aqui e ali, proclamam alto e bom som que ocupam este terreno espiritual, que é seu apanágio. No seu entender, se alguém rejeita a religião, rejeita ao mesmo tempo toda a experiência espiritual.
JCC — O que é perfeitamente abusivo. Porque estaria a vida espiritual necessariamente ligada a qualquer crença sobrenatural? Poderíamos quase dizer o contrário, que a fé é o abandono do espírito.
DL — Realmente poder-se-ia dizer isso. Mas não procuro desviar ninguém da sua fé, se ela for praticada com tolerância. Veja-se, entretanto, aonde pode conduzir a confusão entre o religioso e o espiritual: imaginemos um homem que fala da noção de benevolência ou de perdão, ou ainda de compaixão, esta atitude, bem o sabe, é um dos fundamentos do budismo. Um outro homem, que não tem qualquer preocupação de ordem religiosa, escuta o primeiro e diz encolhendo os ombros: isso não passa de religião, não estou interessado.
JCC — Faz mal, naturalmente.
DL — É evidente! Caiu numa armadilha grosseira de vocabulário! As palavras «compaixão» ou «caridade» cegaram-no. Ora, trata-se de qualidades humanas, puramente humanas. Não tivemos necessidade de uma revelação divina para as adquirir ou descobrir. (…)
(…)
JCC — O Ocidente interrogou-se longamente sobre esta pretensa liberdade. Não somos comandados pelo meio em que nascemos, pelas crenças que nos envolvem, pela nossa infância, por todos os elementos mais ou menos claros que nos compõem?
DL — É evidente. Daí a dificuldade dessa tarefa. Mas posso dizer que num certo nível de reflexão, o homem teve sempre a escolha. Ele pode adquirir esta liberdade, libertar-se de tudo o que o bloqueia. E deve fazê-lo. Disse um dia que tanto quanto me parece, Deus se deixou dormir algures. Como deve perceber, estava a brincar, pois não levamos em conta a existência de um Deus criador. Mas se é verdade que Deus adormeceu, cabe-nos a nós acordá-lo.
(…)
JCC — Pode também sobreviver-se sem religião?
DL — Naturalmente. (…) Tudo parte de nós. De cada um de nós. As qualidades indispensáveis são a paz de espírito e a compaixão. Sem elas, nem vale a pena tentar. Essas qualidades não só são indispensáveis, como também inevitáveis. Como já lhe disse, encontramo-las em nós se nos dermos ao trabalho de as procurar. Podemos rejeitar toda a forma de religião, mas não podemos rejeitar fora de nós a compaixão e a paz de espírito.
(…)
Dalai Lama & Jean-Claude Carrière, A Força do Budismo, Lisboa, Difusão Cultural, 1995.