Que o amigo seja para vós a festa da terra

21 dezembro 2007

Boas Festas

09 dezembro 2007

Teoria de tudo


Garret Lisi E8 = Teoria da grande unificação?

E8
























Será esta a forma do universo?

07 dezembro 2007

Topos de uma não-pessoa




















Creatio Universi
Johann Jakob Scheuchzer, 1731.
Primeira ilustração da bíblia
ilustrada Physica Sacra.

"No princípio deus criou os céus e a Terra."

I. Os onze céus
II. Sistema Tychoneano
III. Sistema semi-Tychoneano
IV. O Sol e os seus sete filhos
V. Corpos celestes
VI. Esfera armilar
VII. Astrolábio


(…) Mas todas estas posições não constituem as figuras de um Eu primordial do qual derivaria o enunciado: pelo contrário, elas derivam do próprio enunciado e são, a esse título, os modos de uma ‘não-pessoa’ (…)
(…) O mesmo se dirá dos objectos e dos conceitos do enunciado. É suposto uma proposição ter um referente. Quer isto dizer que a referência ou a intencionalidade é uma constante intrínseca da proposição, enquanto que o estado de coisas que vem (ou não) preenchê-la é uma variável extrínseca. Mas não se passa o mesmo com o enunciado: este tem um ‘objecto discursivo’ que não consiste, de modo nenhum, num estado de coisas visado mas, pelo contrário, deriva do próprio enunciado. É um objecto derivado que se define, precisamente, no limite das linhas de variação do enunciado enquanto função primitiva. Assim, de nada serve distinguirem-se tipos de intencionalidade diferentes, de entre os quais uns possam ser preenchidos por estados de coisas e outros permaneçam vazios, sendo então fictícios ou imaginários de uma maneira geral (encontrei um unicórnio) ou mesmo absurdos de uma maneira geral (um círculo quadrado). (…) Finalmente, a mesma conclusão é válida para os conceitos: uma palavra tem sem dúvida um conceito como significado, quer dizer, como variável extrínseca à qual se reporta por virtude dos seus significantes (constante intrínseca). Mas, ainda aqui, o mesmo já não sucede com o enunciado. Este possui os seus conceitos, ou antes, os seus ‘esquemas’ discursivos próprios, no lugar de entrecruzamento dos sistemas heterogéneos pelos quais passa enquanto função primitiva (…)
(…) Se os enunciados se distinguem das palavras, das frases ou das proposições, é porque eles compreendem em si, como suas ‘derivadas’, as funções de sujeito, as funções de objecto e as funções de conceito. Mais precisamente, sujeito, objecto e conceito não são senão funções derivadas da primitiva, ou do enunciado. Tanto assim, que o espaço correlativo é a ordem discursiva dos lugares ou posições de sujeitos, objectos e conceitos numa família de enunciados. (…)
(…) Eis aquilo que um grupo de enunciados é e aquilo que é, já, um enunciado sozinho: Multiplicidade. (…) O essencial da noção é, no entanto, a constituição de um substantivo de modo a que ‘múltiplo’ deixe de ser um predicado oponível ao Um, ou atribuível a um sujeito referenciado como uno. A multiplicidade mantém-se totalmente indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do uno, e sobretudo ao problema de um sujeito que a condicionaria, a pensaria, a faria derivar de uma origem, etc. Não há uno nem há múltiplo, o que, de todas as maneiras, seria remeter para uma consciência que se retomaria no uno e se desenvolveria no outro. Apenas há multiplicidades raras, com pontos singulares, com lugares vazios para aqueles que por instantes vêm aí funcionar como sujeitos, com regularidades cumuláveis, repetíveis e que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem é tipológica, ela é topológica. (…)

Giles Deleuze, Foucault, Lisboa, Vega, 1998.

05 dezembro 2007

No interstício ou na disjunção
























Primitive Blaze
Bridget Riley, 1963-64.
Emulsão sobre placa, 94,5 x 94,5.
Sotheby's, Londres.


(…) — “que significa pensar? A que se chama pensar?” — (…)

(…) Pensar é experimentar, é problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento. E, para começar, naquilo que decorre do saber enquanto problema, pensar é ver e é falar, mas pensar faz-se no entre-dois, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. É, de cada vez, inventar o entrelaçamento, desfechar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer refulgir um relâmpago de luz nas palavras, e fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com que o ver alcance o seu limite próprio, e o falar o seu, de tal sorte que os dois sejam o limite comum que os relaciona um com o outro, separando-os.
Em seguida, em função do poder enquanto problema, pensar é emitir singularidades, é lançar os dados. Aquilo que o lance de dados exprime, é que pensar provém sempre do de-fora (desse de-fora que já se precipitava no interstício ou constituía o limite comum). Pensar não é nem inato nem adquirido. Não é o exercício inato de uma faculdade, mas não é também um learning que se constitui no mundo exterior. (…) a genitalidade do pensamento enquanto tal, um pensamento que vem de um de-fora mais longínquo que todo e qualquer mundo exterior, e portanto mais próximo que todo e qualquer mundo interior. Será necessário chamar Acaso a esse de-fora? (...)


Giles Deleuze, Foucault, Lisboa, Vega, 1998.

29 novembro 2007

Sinto-me-te
























Anthomedusae
Ernst H.P. Haeckel, de 1899 a 1904.
Incluído na série Formas da Natureza.
Impressão litográfica de Adolf Giltsch.


Distante, ébria de sentidos
após falarmos sem dizer.
Sinto-me-te: clara luminosa.

16-02-1999

Aproximar-te-ás
























Siphonophorae
Ernst H.P. Haeckel, de 1899 a 1904.
Incluído na série Formas da Natureza.
Impressão litográfica de Adolf Giltsch.

Do teu simplifica o desenho
e aproximar-te-ás do centro d’energia.
Sem corpo tornas-te nela.

04-02-1999

28 novembro 2007

Regularidade enunciativa
























1597
Janne Kittänen, 2007.
Poliamida aglomerada a laser,
16 x 50 cm.
Candeeiro de série da Fredom of Creation.


(…) Um enunciado representa sempre uma emissão de singularidades, de pontos singulares que se distribuem num espaço correspondente. (…) Por maioria de razão, num espaço considerado pouco importa que uma emissão se faça pela primeira vez ou seja antes uma retoma, uma reprodução. O que conta é a regularidade do enunciado: não uma regularidade média, mas uma curva. Com efeito, o enunciado não se confunde com a emissão de singularidades que ele pressupõe, mas com a configuração da curva que passa na vizinhança daquelas e, mais geralmente, com as regras do campo onde elas se distribuem e se reproduzem. (…)


Giles Deleuze, Foucault, Lisboa, Vega, 1998.

12 novembro 2007

O que a faz silêncio
























L'Origine del Mondo
Constantin Brancusi, 1920.
Metal e pedra, 76,2 x 50,8 x 50,8.
Dallas Museum of Art.

Bei Brancusi, Zu Zweit

Wenn dieser Steine einer
verlauten ließe,
was ihn verschweigt:
hier, nahebei,
am Humpelstock dieses Alten,
tät es sich auf, als Wunde,
in die du zu tauchen hättst,
einsam,
fern meinem Schrei, dem schon mit-
behauenen, wei
ßen.


Com Brancusi, a Dois

Se destas pedras uma
anunciasse
o que a faz silêncio:
aqui, muito perto,
na bengala deste velho,
isso se abriria, como ferida
em que terias de mergulhar,
solitário,
longe do meu grito, ele também já
talhado pelo cinzel, branco.


Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, trad. J.Barrento, Lisboa, Cotovia, 1996.

Do céu, na montanha


















Atlântico 2004


Abglanzbeladen, bei den
Himmelskäfern,
im Berg.

Den Tod,
den du mir schuldig bliebst, ich
trag ihn
aus.

Carregado de brilhos, entre
os escaravelhos do céu,
na montanha.

A morte
que me ficaste a dever, eu
carrego-a
até ao fim.


Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde, trad. J.Barrento, Lisboa, Cotovia, 1996.

09 novembro 2007

Inesperado desempenho










Os leitores que se tornaram assíduos do Skapsis sabem que aqui não é comum anunciar espectáculos por vir ou em cena, mas desta vez teve de abrir-se uma excepção. Ontem tive a oportunidade de assistir ao inesperado desempenho de um excelente artista Japonês, integrado no festival Temps d'Images. Hiroaki Umeda volta ao palco hoje pelas 21h30 na Culturgest.

Este coreógrafo começou por estudar fotografia para depois se voltar para a dança. «A dança é a tempo real.» Disse ontem aos espectadores que o foram ouvir depois, como justificação para esta mudança de disciplinas. Contudo, não ouve propriamente uma mudança de disciplinas mas uma modificação na abrangência das disciplinas. Hiroaki estudou fotografia (desenho da luz) e dança (desenho do corpo) por pouco tempo, e cedo se tornou autodidata — também nos confidenciou. Mas nestas duas peças em exibição, While Going to a Condition e Finore, o artista também concebeu a banda sonora. O resultado é de uma impressionante fluidez com altíssima qualidade. Disse-nos ainda que o desenho da luz e do som
(hipnótico e industrial) não é menos importante que o do seu corpo, um objecto em movimento, insignificante como qualquer movimento, completamente integrado no conjunto.

Corpo, luz e som, numa coreografia de sincronias rítmicas complexas que dificilmente podem ser descritas sem cair nos tecnicismos de uma linguagem incompreensível. Embora se possa fazer alguma descrição da luz e do som, a coreografia corporal que Hiroaki dança tem de ser experimentada ao vivo, razão pela qual não se apresenta aqui mais que uma imagem da primeira peça.

A não perder!


Fotografia de F.Villemin

07 novembro 2007

É um modo intensivo
























Shirin
Bridget Reiley, 1984.
Óleo sobre tela, 171,5 x 140,8 cm.
Galeria Nicole Schlégl, 2007.


(...) Um processo de subjectivação, isto é, uma produção de modos de existência, não se pode confundir com um sujeito, a menos que este seja destituído de toda a interioridade, de toda a identidade. A subjectivação nem sequer tem a ver com a «pessoa»: é uma individuação, particular ou colectiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, uma aragem, uma vida...). É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia ir além do saber nem resistir ao poder. (...)

A Vida Como Obra de Arte
Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.

Como o vento que nos bate nas costas














(...) A lógica de um pensamento não é um sistema racional em equilíbrio. (...) A lógica de um pensamento é como o vento que nos bate nas costas, uma série de rajadas e choques. Cuidávamos estar perto do porto e en-contramo-nos lançados em pleno mar alto (...). (...)

A Vida Como Obra de Arte
Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.



Fotografia das galáxias NGC 2207 e IC 2163 por HST, NASA.

20 outubro 2007

Vissonalizar


Hexstatic, Pulse.

19 outubro 2007

Tetrada
























Match-Point
Alexandre Bobone, 2007.
Metal e bolas de ténis, 28 cm.
Candeeiro de série da Bigornalouca.

Electronic Arm


Laurie Anderson, O Superman.

08 outubro 2007

Natura naturata, natura naturans



















Prazeres públicos/ sacrifícios privados (pormenor),
da série Natura naturata - Natura naturans.
Susana Piteira em co-autoria com Rietske van Reey, 2004.
Instalação multimédia, pedra, DVD, som e luz,
2 m.
Em exposição até 19 de Outubro na galeria
Artes Solar Sto. António.

21 setembro 2007

O eterno retorno não se diz do Mesmo

















Serra da Estrela 1996

(...) Mas, o difícil é a interpretação destas palavras: eterno retorno do Mesmo. Porque não está aí suposta nenhuma forma de identidade, e porque cada eu dissolvido não volta a passar por si a não ser ao passar pelos outros, ou não se quer a si mesmo a não ser por meio das séries de papéis que não são ele. A intensidade, sendo desde logo diferença em si, abre-se em séries disjuntivas, divergentes. Mas, precisamente, por não estarem as séries submetidas à condição da identidade de um conceito em geral, bem como não está submetida à identidade de um eu como indivíduo a instância que as percorre, as disjunções permanecem disjunções, deixando a sua síntese de ser exclusiva ou negativa, para tomar, pelo contrário, um sentido afirmativo em que a instância móvel passa por todas as séries disjuntivas; numa palavra, a divergência e a disjunção como tais tornam-se objectos de afirmação. O verdadeiro sujeito do eterno retorno é a intensidade, a singularidade; daí a relação entre o eterno retorno como intencionalidade realizada e a vontade de poder como intensidade aberta. Ora, desde que a singularidade se apreenda como pré-individual, fora da identidade de um eu, quer dizer, enquanto fortuita, ela comunica com todas as outras singularidades, sem deixar de formar com elas disjunções, disjunções em que ela passa por todos os termos disjuntivos afirmando-os em simultâneo, em vez de os repartir em exclusões. (…)
(…) O que o eterno retorno expressa é este novo sentido da síntese disjuntiva
— e nesse sentido o eterno retorno não se diz do Mesmo («ele destrói as identidades»). Pelo contrário, o eterno retorno é o único Mesmo, mas que se diz do que difere em si — do intenso, do desigual ou disjuntivo (vontade de poder). Ele é o todo, mas que se diz do que é desigual, a Necessidade, que se diz apenas do fortuito. É unívoco: ser, linguagem ou silêncio unívocos. Mas o ser unívoco diz-se de entes que não o são, a linguagem unívoca aplica-se a corpos que não o são, o silêncio «puro» rodeia palavras que não o são. Seria pois vã a procura da simplicidade de um círculo no eterno retorno, bem como a procura da convergência de séries em torno de um centro. Se círculo há, é o circulos vitiosus deus: aí, a diferença está no centro, e o circuito consiste na eterna passagem pelo meio das séries divergentes — circulo que é sempre descentrado por uma circunferência excêntrica. O eterno retorno é Coerência, mas é uma coerência que não deixa que subsista a minha, a do mundo e a de Deus. Também a repetição nietzschiana nada tem a ver com a kierkgaardiana, ou, mais geralmente, a repetição do eterno retorno nada tem a ver com a cristã. (…) Há uma diferença de natureza entre o que retorna «de uma vez por todas» e o que retorna para todas as vezes, uma infinidade de vezes. Do mesmo modo, o eterno retorno é o Todo, mas Todo que se diz dos membros disjuntivos ou das séries divergentes: não faz com que tudo retorne, faz com que nada retorne do que retorna uma só vez, nada retorne do que pretende recentrar o círculo, do que pretende tornar as séries convergentes, restaurar o eu, o mundo e Deus. Cristo não retornará no círculo de Diónisos, a ordem do anticristo afasta a outra. Tudo o que, fundado em Deus, faz da disjunção um uso negativo ou exclusivo, tudo isso é negado, tudo isso é excluído pelo eterno retorno. (...)

Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.

08 setembro 2007

Cravada na pedra

















2006

Perdida dos Homens
escorre, pelos dedos urdidos
nas unhas, cravada na pedra.

Raios de luz casada
nas frágeis gavetas fractais.
Sonhos cupidos

d’era p’los braços
as raízes das pernas.

Árvore ao vento que passa
suspensa do tamanho
sem fundo.

10-06-1998

07 setembro 2007

Bergauf



















Aveiro 2006

Não vemos nada,
só nos chega a luz.

Ver algo
será certamente
iluminá-lo.

12-03-2004

04 setembro 2007

Marimba


Spices, Perfumes, Toxines de Avner Dormans por PercaDu
acompanhado pela Orquestra Filarmónica de Israel dirigida
por Zubin Metha.
Spices

28 agosto 2007

Sem palavras


Lieder ohne Worter de Mendelsshon por Jacqueline du Pré
acompanhada por Iris du Pré.

Free Hugs


Canpanha Free Hugs de Juan Mann. Abraços grátis.


O Skapsis subscreve esta campanha!

25 agosto 2007

O galope


Transcendental Etude no. 4 "Mazeppa" de Liszt por Boris Berezovsky.

24 agosto 2007

Esta viagem
















A Morte de Sócrates
Jacques-Louis David, 1787.
Óleo sobre tela, 129,5 x 196,2 cm.
The Metropolitan Museum of Art, Nova York.


(...) Já com o banho tomado, sentou-se junto de nós e pouco mais conversou. O servidor dos Onze veio entretanto e, chegando-se ao pé dele, eis que diz:

— Ao menos, Sócrates, não terei de censurar em ti o que censuro noutros, que se insurgem e me amaldiçoam quando, por imposição dos arcontes, lhes venho comunicar a ordem de beber o veneno… A ti, conheci-te bem durante este tempo: foste o homem mais generoso, mais aprazível e excelente de quantos por aqui passaram! Estou certo de que também agora não te insurgirás contra mim mas contra os verdadeiros culpados, que conheces bem! Agora… sabes o que vim anunciar-te. Adeus, e trata de aceitar da melhor forma a sorte inevitável.
E, chorando, voltou costas e afastou-se. Sócrates ficou ainda a olhá-lo:

— A ti também, adeus! Por minha parte farei como dizes — respondeu. E, voltando-se para nós, comentou: — Que amável, este homem! Durante todo este tempo não deixava de aqui vir, aqui ficava por vezes a conversar comigo. Excelente criatura e que generosas as suas lágrimas! Mas vamos, Críton, tratemos de obedecer-lhe; que me tragam o veneno, se já estiver preparado; se não, que o preparem.
E diz Críton: — Mas, salvo o erro, Sócrates, o Sol ainda está nas montanhas e não se pôs por enquanto! De resto, sei de outros que só o tomaram mesmo muito mais tarde e que, depois de a ordem lhes ser dada, ainda comeram e beberam a seu bel-prazer, alguns mesmo na companhia daqueles que mais desejavam. Vamos, não te apresses, que ainda há tempo.
Replicou-lhe ele: — É natural, Críton, que esses a quem te referes assim procedam: é que estão convencidos de que lucram com isso. Mas, por mim, é também natural que não proceda como eles, pois, estou convicto, nada lucraria em beber o veneno um pouco mais tarde, a não ser tornar-me ridículo aos meus próprios olhos, com esse apego a uma vida que já deu o que tinha a dar… Portanto — concluiu —, trata de obedecer-me e não procedas de outro modo.
Ouvindo isto, Críton fez sinal ao escravo que estava de pé. Este saiu e, decorrido ainda bastante tempo, voltou com o homem encarregado de lhe ministrar o veneno, que já vinha moído na taça. Ao vê-lo, Sócrates interpelou-o:

— Muito bem, meu caro: tu, que percebes destas coisas, diz lá: que é necessário fazer?

— Apenas — explicou — passear um pouco depois de beberes o veneno; quando sentires as pernas pesadas, deitas-te então, e o veneno actuará por si.
Ao mesmo tempo estendeu a taça a Sócrates. E com perfeito à-vontade, Equécrates, sem que a mão lhe vacilasse ou se alterasse a cor de rosto, pegou nela e, fixando no homem o seu habitual «olhar de touro», inquiriu:
— Que dizes, se me servir desta bebida para uma libação? É ou não lícito?
— Por nossa parte, Sócrates — respondeu —, preparamos a dose que achamos conveniente.
— Entendo — disse. — Mas, pelo menos, ser-me-á permitido, se é que não devo mesmo, dirigir uma prece aos deuses para que me tornem propícia esta viagem para o Além… Essa é pois a minha prece e oxalá assim seja!
E dizendo isto, segurando a taça com a mesma naturalidade e serenidade de espírito, despejou-a de um só trago. Nós, que de há algum tempo a essa parte ainda conseguíamos, mais ou menos, reter o pranto, quando o vimos beber até ao fim, não pudemos mais: a mim, pelo menos, as lágrimas corriam-me perdidamente, a ponto de esconder o rosto para chorar à vontade — não por ele, decerto, mas pela desgraça de ficar, eu, privado de um companheiro como este! Críton, ainda primeiro do que eu, incapaz de conter as lágrimas, levantou-se e saiu. Quanto a Apolodoro, que já antes não deixara de chorar, esse soltava rugidos tais, por entre lágrimas e lamentações, que, ao ouvi-lo, não havia ninguém a quem não se partisse o coração — exceptuando, naturalmente, o próprio Sócrates, que exclamou:

— Mas que é isto, meus caros?... Que estão a fazer? Eu, se mandei sair as mulheres, não foi por outro motivo — para que não perturbassem… Sempre ouvi dizer que se deve morrer em serenidade. Sosseguem e dominem-se!
Ouvindo isto, envergonhámo-nos e retivemos o pranto. Ele então deu uns passos em volta, até que disse sentir as pernas pesadas e se deitou de costas — tal como o homem prescrevera. Entretanto, o que lhe ministrara o veneno, palpando-lhe o corpo, observava-lhe de tempos a tempos os pés e as pernas. Em seguida, carregando com força num pé, perguntou-lhe se ainda sentia, ao que ele respondeu que não. Recomeçou depois pela parte inferior das pernas; e, assim subindo, nos fez ver que se tornava frio e hirto. Sem deixar de o palpar, observou-nos que, quando lhe atingisse o coração, seria o fim… E já praticamente toda a região do ventre estava gelada quando Sócrates, descobrindo o rosto — pois tinha-o, com efeito, coberto —, disse estas palavras, as últimas que proferiu:

— Críton, devemos um galo a Asclépio… Paguem-lhe, não se esqueçam!
(...)


Platão, Fédon, trad. Mª Teresa Schiappa de Azevedo, Coimbra, Minerva, 1998.

21 agosto 2007

Haverá mais
























Agosto 2007

Es wird noch ein Aug sein,
ein fremdes, neben
dem unsern: stumm
unter steinernem Lid.

Kommt, bohrt euren Stollen!

Es wird eine Wimper sein,
einwärts gekehrt im Gestein,
von Ungeweintem verstählt,
die feinste der Spindeln.

Vor euch tut sie das Werk,
als gäb es, weil Stein ist, noch Brüder.


Haverá mais um olho,
estranho, junto ao
nosso: mudo
sob a pálpebra de pedra.

Vinde, cavai as vossas galerias!

Haverá uma pestana,
virada para dentro, na rocha,
temperada com lágrimas não choradas,
o mais fino dos fusos.

À vossa frente faz ela o trabalho,
como se houvesse, porque há pedra, ainda irmãos.


Esperança
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

18 agosto 2007

Nemesis?
























O Universo
Hildegard von Bingen, 1151.
Iluminura em manuscrito.
Liber
Scivias, Rupertsberg Codex.

(…) Then I saw a huge object, round and shadowy. Like an egg it was pointed on top...Its surrounding layer was bright fire. Beneath this lay a dark skin. In the bright fire hovered a reddish, sparkling fireball. (…)

Hildegard von Bingen, Liber Scivias, Rupertsberg Codex .
England, Dark Star Symbolism, 2006.

(…) Então vi um objecto enorme, redondo e ensombreado. Ponteagudo no topo como um ovo… Envolto numa camada de fogo brilhante. Em baixo desta camada estava uma pele escura. No fogo brilhante pairava uma avermelhada bola de fogo faiscante. (…)

15 agosto 2007

D'Ártemis




















Leo Delibes, Sylvia.
Coreografia de Frederik Ashton por Chistopher Newton
para a Metropolitan Opera House com Paloma Herrera
e o American Ballet Theatre, 2005.

Chi crederia che sotto umane forme
e sotto queste pastorali spoglie
fosse nascosto un Dio? (…)

Torquato Tasso, Aminta.
Italia, De Bibliotheca, 2005.

Quem acreditaria que sob a humana forma
e sob este pastoral despojo
estivesse oculto um deus? (…)



Fotografia de Gene Schiavone

13 agosto 2007

Uma asa nunca esquece

















Uma asa nunca esquece
agita-se
se lhe toca o vento.


Priscila Machado, 14 de Julho de 2005.

12 agosto 2007

Ombro a ombro




















Lisboa 2005

Du darfst mich getrost
mit Schnee bewirten:
sooft ich Schulter an Schulter
mit dem Maulbeerbaum schritt durch den Sommer,
schrie sein jüngstes
Blatt.

Podes confiante
acolher-me com neve:
sempre que eu ombro a ombro
com a amoreira atravessava o verão,
gritava a sua mais jovem
folha.

Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006

Mais altos
















Sintra 1996


O verde dos bambus mais altos é azul
ou então é o céu que pousa nos seus ramos.

Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Lisboa, Fundação Eugénio de Andrade, 2005.

11 agosto 2007

Inteiramente um eco




















Vila Viçosa 2005

(...) Parece-nos em geral, a nós que manejamos a língua de forma empírica, que toda a literatura antiga é algo de artificial e de retórico, incluindo a literatura romana. Isso explica-se em última instância pelo facto de que a prosa própria da antiguidade é inteiramente um eco do discurso oral e formou-se segundo as suas leis, enquanto que a nossa prosa se explica cada vez mais através da escrita, a nossa estilística dá-se a ver apenas através da leitura. Mas o leitor e o auditor pedem cada um uma forma de exposição (Darstellung) absolutamente diferente e por essa razão a literatura da antiguidade soa-nos como «retórica»: quer dizer que se dirige antes de mais ao ouvido para o seduzir. Extraordinário desenvolvimento do sentido rítmico entre os Gregos e os Romanos, para quem escutar a palavra é ocasião de um formidável e continuado exercício. Ocorre aqui algo de semelhante à poesia — conhecemos os poetas «literários», os Gregos conheciam uma poesia autêntica sem a mediação do livro. Nós somos muito mais descoloridos e abstractos. (...)

Nietzsche, Da Retórica, Lisboa, Vega, 1995.

10 agosto 2007

Folha a folha

















Arrábida 2005

Der Stein.
Der Stein in der Luft, dem ich folgte.
Dein Aug, so blind wie der Stein.

Wir waren
Hände,
wir schöpften die Finsternis leer, wir fanden
das Wort, das den Sommer heraufkam:
Blume.

Blume — eins Blindenwort.
Dein Aug und mein Aug:
sie sorgen
für Wasser.

Wachstum.
Herzwand um Herzwand
blättert hinzu.

Ein Wort noch, wie dies, und die Hämmer
schwingen im Freien.

A pedra.
A pedra no ar, que segui.
O teu olhar, tão cego como a pedra.

Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.

Flor — uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca
de água.

Crescimento.
Folha a folha acrescenta
as paredes do coração.

Uma palavra ainda, como esta, e os martelos
rodopiam ao ar livre.


Flor
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

02 agosto 2007

Em proveito de uma multiplicidade



















Cloud Gate
Anish Kapoor, 2004.
(fotografia de
James Morris).
Aço inox, 167,64 cm.
Millenium Park, Chicago.

(…) É sob a forma de graus intensivos, ou quantidades intensivas, que os espíritos mortos têm uma «subsistência», uma vez perdida a «existência» ou a extensão do corpo. É sob essa forma que eles são singularidades, uma vez perdida a identidade do eu. As intensidades compreendem em si o desigual, ou o diferente, cada uma é desde logo diferença em si, ainda que na manifestação de uma qualquer todas estejam implicadas. (…) Singularidades pré-individuais e pessoais, esplendor do Impessoal, singularidades móveis e comunicantes que penetram umas nas outras pelo meio de uma infinidade de graus, de uma infinidade de modificações. Mundo fascinante onde a identidade do eu se perdeu, não em benefício da identidade do Uno ou da identidade do Todo, mas em proveito de uma multiplicidade intensa e de um poder de metamorfose, em que se jogam, uns nos outros, relações de poder. É o estado daquilo que deve ser chamado complicatio, contra a simplificatio cristã. (…)


Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.

28 julho 2007

Por dar-se


















Lisboa 2007

Definir é mentir
por comum acordo.
E se o que não acorda
não se chega a acordar,
foi por dar-se que acordou.

16-02-1999

Por pedagogia

















Sintra 1996

«Não deveis tornardes
demasiado evidentes,
pois correis o risco de
penalizardes o mistério
das vossas relações.»

Quando
da necessidade
por pedagogia,
deveis tornar
à poesia.

09-12-2002

25 julho 2007

§




















Em Fevereiro, quando nasceu o Skapsis, publiquei uma pequena introdução ao blog e a mim como blogger, que dava algumas pistas para o significado do título. Agora, por respeito aos leitores que entretanto aderiram ao Skapsis, impõe-se uma nova nota de explicação, mas não em relação ao blog.

Depois de cinco meses já não sou tão nova nisto quanto era, e à medida que fui explorando este universo o Skapsis cresceu. Entre as várias evoluções e acrescentos, juntei uma lista viva de categorias. Lista que, em geral, não precisa de introducção, mas há duas categorias que podem implicar esclarecimento: skapsis e §.

Sob a categoria skapsis publico os textos que, como este, dizem respeito à escrita no blog e não fariam sentido fora dele. Sob a categoria § publico imagens e, ou, textos, que fiz ou escrevi. Como vocês, meus prezados leitores, terão percebido, as obras do mundo que aqui se publicam estão identificadas tanto quanto me é possível identificar, e nestas incluo aquelas que do meu fazer já não me pertencem: como é o caso dum desenho, devidamente identificado como todas as outras. No entanto, as feitas por mim e que ainda me pertencem não têm mais identificação que a data, e o lugar no caso das fotografias ou desenhos.

Dá-se o caso excepcional de uma posta que recebeu ambas as categorias; por um lado foi escrita de propósito para o blog e, por outro, é suficientemente universal e objectiva para valer fora dele.

Aproveito para vos agradecer a todos, leitores e comentadores, pela vossa rica presença no Skapsis e desejo-vos boas estadias, na esperança de que este blog continue a ser do vosso agrado.

Beijinhos a todos.

Danço pelo caminho


















Atlântico 2004

Menino veloso lido da luz,

tenho uma nova maneira do acordar.
O beijo que se desprende da imagem na claridade
de lençóis brancos dos teus baptismos. Sonho-te
continuamente
e acordo inspiradíssima,
como tendo unicamente inspirado durante o sono
e só ao acordar pudesse deitar. Ar vivo!

É enorme encontrar!

Disse-me um dia que, ao inspirar os dias e as coisas,
a sua amiga entrara na demora completa, para nela ficar
até ao sacro momento de todas sair. Sim, o que me dá norte.
E neste todo lirismo encantado, sonho de-lírio em-cantar,
danço pelo caminho que me abre
até que a expiração surja vinda de uma lonjura
rica por todas as sensações.
Sagrado deitar.

Abres-me e nem sabes como.
E assim voltam num florir que me escorre da boca
com pétalas de veludo; todas as coisas, e os dias, nesta hera
lidos como no voo do pássaro solto. Parecem querer ir ter contigo.
Umbigo do mundo d’acesso divino,
diverso escorrido livre como o vento.
Comovente.

E num contínuo real tudo se ergue de novo
como num dia cheio de perfumes desejáveis.

Quero cheirar-te para sempre!
Quero florir-te para sempre!
Quero mergulhar-te-me-te continuamente..., e largar todos os laços,
todas as amarras, e ditos e palavras,
avançar pelo tempo.
Contigo-me-te-migo-tu florir-te-me-nos.

Oxalá,
numa barca d'infinita viagem,
largo a ressoar para nunca mais perder
o que enorme foi encontrar. E digo-te,
sabedoria das alturas, a tua filha sabe cantar.

"Pois cada um dos Celestiais quer sacrifícios.
E se algum for omitido,
Nada de bom acontece."

É enorme cantar!
É enorme dançar!

E essa dureza d’acesso à vida, doce
que por ver-te rodar se eleva exultando e grita cores vivas,
é o rito profundo lar que se estende para erguer, nosso olhar,
que se há palavras: só podem ser estas
a fazer-te justiça.

E assim solta-s’o pião que o todo sabe e ensina,
torneando luz fina d’amar danço,
continuamente contigo,

não se esgota o canto
no trilho de um sorriso. Altíssimo da bênção d’altar
que vindo ao lar, escorre ainda as águas.
Cristalinas áureas rosáceas do santo perfume,
menino veloso lido da luz,

és tu que me tiras da cruz;
és tu que me dás de novo, e novo,
e novo despontar.

Inspira junto comigo
esta nova maneira do acordar.


Contínuo Real

13-11-2005

Das folhas



















Borba 2005


O espaço do tempo
não percorrido, estendido
como único do que penso:
laranjas quase vermelhas
de — pressente
pelas árvores adentro,
pela luz arriscada das folhas,

fotossíntese

vinda;
plena d’energia única
no lugar do não-pensamento
perdurado. Prazer
d’infinito.


28-12-1997

23 julho 2007

Canto à Natureza










Sintra 2006

Euch ruf ich über das Gefild herein
Vom langsamen Gewölk ihr heißen Strahlen
Des Mittags, ihr Gereiftesten, daß ich
An euch den neuen Lebenstag erkenne.
Denn anders ists wie sonst! vorbei, vorbei
Das menschliche Bekümmernis! als wüchsen
Mir Schwingen an, so ist mir wohl und leicht
Hier oben, hier, und reich genug und froh
Und herrlich wohn’ ich, wo den Feuerkelch
Mit Geist gefüllt bis an den Rand, bekränzt
Mit Blumen, die er selber sich erzog
Gastfreundlich mir der Vater Ätna beut.
Und wenn das unterirdische Gewitter
Itzt festlich auferwacht zum Wolkensitz
Des nahverwandten Donnerers hinauf
Zur Freude fliegt, da wächst das Herz mir auch,
Mit Alden sing ich hier Naturgesang.

(...)

A vós convosco, ó raios quentes do meio-dia
Perfeitamente maduros, para que desçais das
Lentas nuvens e, passando por cima dos campos
Até junto de mim, eu possa em vós reconhecer o novo dia de vida.
Pois tudo é diferente de outrora! Passou, passou
A humana aflição! Como se
Me nascessem asas, sinto-me bem leve
Aqui em cima, aqui, e suficientemente rico e alegre
E magnificamente habito onde o cálice de fogo
Está repleto de espírito até à borda, coroado
Com flores, que para ele criou
E me oferece, hospitaleiro, o Pai Etna.
E quando a trovoada subterrânea
Agora acorda festivamente para voar
Com alegria até ao trono das nuvens
Do aparentado deus Tonante, também se dilata o meu coração,
Erguendo aqui, com as águias, o meu canto à Natureza.
(...)


Primeiro acto da terceira versão

Hölderlin, A morte de Empédocles, Lisboa, Relógio D’Água, 2001.

Fingindo conhecer













Pois bem, vamos a ver se consigo exprimir com mais clareza o meu pensamento. Digo que há duas realidades diferentes a que correspondem duas artes: à arte que se refere à alma chamo política; à que se refere ao corpo não posso atribuir uma designação só, mas, embora a cultura do corpo constitua uma unidade, distingo nela duas partes, a ginástica e a medicina. O que na política corresponde à ginástica é a legislação, o que nela corresponde à medicina é a justiça. Há, portanto, dois grupos de artes que se definem pelo seu objecto, de um lado a medicina e a ginástica, do outro a justiça e a legislação. Mas os elementos de cada grupo acusam também diferenças entre si.
Da existência destas quatro artes, que visam o maior bem do corpo ou da alma, se apercebeu a adulação, não por meio de um conhecimento raciocinado, mas por via da conjectura, e, dividindo-se então em quatro partes e insinuando cada uma delas sob a arte correspondente, fez-se passar pela arte cujo disfarce adoptou. Não tem o mínimo interesse em procurar o que seja o melhor, mas, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimo valor. É assim que a cozinha toma a aparência da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que, se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, médico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer à fome.
A isto chamo eu adulação, que considero uma coisa vergonhosa, Polo (é a ti que neste momento me dirijo), porque visa o agradável sem a preocupação do melhor. E sustento que ela não é uma arte, mas uma actividade empírica, porque não tem na sua base um princípio racional que permita justificar as várias formas do seu procedimento no que respeita à natureza e às suas causas. Ora, eu não chamo arte a uma actividade que não esteja fundada na razão. Se tens algo a objectar ao que afirmo, estou pronto a fornecer explicações suplementares.
Portanto, repito, a cozinha é a adulação disfarçada de medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e do vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descuram a beleza natural, proporcionada pela ginástica.
Resumindo, dir-te-ei, em linguagem matemática (talvez assim me compreendas melhor), que a toilette está para a ginástica como a sofistica está para a legislação, e a cozinha para a medicina como a retórica para a justiça. Estas actividades, já o disse, distinguem-se pela sua natureza. Dada, porém, a estreita relação que existe entre elas, sofistas e oradores confundem-se, ao realizar o seu trabalho no mesmo domínio, sobre os mesmos assuntos, sem conhecerem exactamente a natureza das suas funções e com idêntica ignorância a seu respeito por parte dos outros homens. Efectivamente, se, em vez de ser a alma a comandar o corpo, fosse este a comandar-se a si próprio; se a alma não submetesse a realidade à sua apreciação, distinguindo a cozinha da medicina, e fosse o corpo a fazer essa distinção, com base apenas no critério do prazer que retira destas coisas, então, meu caro Polo, teriam aqui inteira aplicação aquelas palavras de Anaxágoras que tu conheces muito bem: «Todas as coisas se misturariam e confundiriam», e a medicina e a saúde não se distinguiriam da cozinha.
Sabes agora o que entendo por retórica: ela é em elação à alma aquilo que a cozinha é em relação ao corpo. Foi talvez um procedimento estranho o meu, de te proibir os longos discursos para depois me espraiar tão longamente, mas tenho para isto uma desculpa: enquanto te falei concisamente, não me entendeste bem nem foste capaz de aproveitar nada das respostas que te dei; estavas sempre a pedir explicações. Se, pela minha parte, as tuas respostas também me parecerem insuficientes, alarga também tu o teu discurso; caso contrário, deixa as coisas como estiverem, que assim é que é bom. E agora vê se te satisfaz a minha resposta.

Platão, Górgeas, trad. Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 1997.

Áureos
























Pharol da Barra
Postal de 1920s.

























Barra 1994

Os tempos áureos,
vão sempre sendo
mais áureos,
enquanto vão
áureos existindo.

28-04-2001

21 julho 2007

É tempo que a pedra se decida a florir




















Sem Título
Carlos Relvas, 1865.
Colódio, 29 x 36,4.
Colecção particular.

Aus der Hand frißt der Herbst mir sein Blatt: wir sind Freunde.
Wir schälen die Zeit aus den Nüssen und lehren sie ghen:
die Zeit kehrt zurück in die Schale.

Im Spiegel ist Sonntag,
im Traum wird geschalfen,
der Mund redet wahr.

Mein Aug steigt hinab zum Geschlecht der Geliebten:
wir sehen uns an,
wir sagen uns Dunkles,
wir lieben einander wie Mohn und Gedächtnis,
wir schlafen wie Wein in den Muscheln,
wie das Meer im Blutstrahl des Mondes.

Wir stehen umschlungen im Fenster, sie sehen uns zu von der Straße:
es ist Zeit, daß man weiß!
Es ist Zeit, daß der Stein sich zu blühen bequemt,
daß der Unrast ein Herz schlägt.
Es ist Zeit, daß es Zeit wird.

Es ist Zeit.

O Outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.

No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.

O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.

Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.

É tempo.


Corona
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

Der Dorn















































Borba 2005


Stille! Ich treibe den Dorn in dein Herz,
denn die Rose, die Rose
steht mit den Schatten in Spiegel, sie blutet!
Sie blutet schon, als wir mischten das Ja und das Nein,
als wirs schlürften,
weil ein Glas, das vom Tisch sprang, erklirrte:
es läutete ein eine Nacht, die finsterte länger als wir.

Wir tranken mit gierigen Mündern:
es schmeckte wie
Galle,
doch schäumt’ es wie Wein —
Ich folgte dem Strahl deiner Augen,
und die Zunge lallte uns Süße…
(So lallt sie, so lallt sie noch immer.)

Stille! Der Dorn dringt dir tiefer ins Herz:
er steht im Bund mit der Rose.

Silêncio! Enterro o espinho no teu coração,
porque a rosa, a rosa
está com as sombras no espelho e sangra!
Já sangrava, quando nós misturámos o Sim e o Não,
quando os bebemos,
porque um copo, que caiu da mesa, tilintou:
repicou numa noite que escureceu durante mais tempo do que nós.

Bebemos com bocas ávidas:
sabia a fel,
no entanto espumava como vinho —
Eu segui o brilho dos teus olhos
e a língua balbuciou doçuras…
(E balbucia, balbucia ainda.)

Silêncio! O espinho penetra-te mais fundo no coração:
está unido com a Rosa.

Silêncio!
Paul Celan, Setes Rosas Mais Tarde, trad. Yvette K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 2006.

19 julho 2007

O que segura o lótus
























Avalokiteshvara
Tibete, Nepal ou Butão.
Tangka, pigmento sobre seda (kesi).

(…)

DL — (…) Os chefes religiosos, aqui e ali, proclamam alto e bom som que ocupam este terreno espiritual, que é seu apanágio. No seu entender, se alguém rejeita a religião, rejeita ao mesmo tempo toda a experiência espiritual.

JCC — O que é perfeitamente abusivo. Porque estaria a vida espiritual necessariamente ligada a qualquer crença sobrenatural? Poderíamos quase dizer o contrário, que a fé é o abandono do espírito.

DL — Realmente poder-se-ia dizer isso. Mas não procuro desviar ninguém da sua fé, se ela for praticada com tolerância. Veja-se, entretanto, aonde pode conduzir a confusão entre o religioso e o espiritual: imaginemos um homem que fala da noção de benevolência ou de perdão, ou ainda de compaixão, esta atitude, bem o sabe, é um dos fundamentos do budismo. Um outro homem, que não tem qualquer preocupação de ordem religiosa, escuta o primeiro e diz encolhendo os ombros: isso não passa de religião, não estou interessado.

JCC — Faz mal, naturalmente.

DL — É evidente! Caiu numa armadilha grosseira de vocabulário! As palavras «compaixão» ou «caridade» cegaram-no. Ora, trata-se de qualidades humanas, puramente humanas. Não tivemos necessidade de uma revelação divina para as adquirir ou descobrir. (…)

(…)

JCC — O Ocidente interrogou-se longamente sobre esta pretensa liberdade. Não somos comandados pelo meio em que nascemos, pelas crenças que nos envolvem, pela nossa infância, por todos os elementos mais ou menos claros que nos compõem?

DL — É evidente. Daí a dificuldade dessa tarefa. Mas posso dizer que num certo nível de reflexão, o homem teve sempre a escolha. Ele pode adquirir esta liberdade, libertar-se de tudo o que o bloqueia. E deve fazê-lo. Disse um dia que tanto quanto me parece, Deus se deixou dormir algures. Como deve perceber, estava a brincar, pois não levamos em conta a existência de um Deus criador. Mas se é verdade que Deus adormeceu, cabe-nos a nós acordá-lo.

(…)

JCC — Pode também sobreviver-se sem religião?

DL — Naturalmente. (…) Tudo parte de nós. De cada um de nós. As qualidades indispensáveis são a paz de espírito e a compaixão. Sem elas, nem vale a pena tentar. Essas qualidades não só são indispensáveis, como também inevitáveis. Como já lhe disse, encontramo-las em nós se nos dermos ao trabalho de as procurar. Podemos rejeitar toda a forma de religião, mas não podemos rejeitar fora de nós a compaixão e a paz de espírito.

(…)


Dalai Lama & Jean-Claude Carrière, A Força do Budismo, Lisboa, Difusão Cultural, 1995.

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