O eterno retorno não se diz do Mesmo
(...) Mas, o difícil é a interpretação destas palavras: eterno retorno do Mesmo. Porque não está aí suposta nenhuma forma de identidade, e porque cada eu dissolvido não volta a passar por si a não ser ao passar pelos outros, ou não se quer a si mesmo a não ser por meio das séries de papéis que não são ele. A intensidade, sendo desde logo diferença em si, abre-se em séries disjuntivas, divergentes. Mas, precisamente, por não estarem as séries submetidas à condição da identidade de um conceito em geral, bem como não está submetida à identidade de um eu como indivíduo a instância que as percorre, as disjunções permanecem disjunções, deixando a sua síntese de ser exclusiva ou negativa, para tomar, pelo contrário, um sentido afirmativo em que a instância móvel passa por todas as séries disjuntivas; numa palavra, a divergência e a disjunção como tais tornam-se objectos de afirmação. O verdadeiro sujeito do eterno retorno é a intensidade, a singularidade; daí a relação entre o eterno retorno como intencionalidade realizada e a vontade de poder como intensidade aberta. Ora, desde que a singularidade se apreenda como pré-individual, fora da identidade de um eu, quer dizer, enquanto fortuita, ela comunica com todas as outras singularidades, sem deixar de formar com elas disjunções, disjunções em que ela passa por todos os termos disjuntivos afirmando-os em simultâneo, em vez de os repartir em exclusões. (…)
(…) O que o eterno retorno expressa é este novo sentido da síntese disjuntiva — e nesse sentido o eterno retorno não se diz do Mesmo («ele destrói as identidades»). Pelo contrário, o eterno retorno é o único Mesmo, mas que se diz do que difere em si — do intenso, do desigual ou disjuntivo (vontade de poder). Ele é o todo, mas que se diz do que é desigual, a Necessidade, que se diz apenas do fortuito. É unívoco: ser, linguagem ou silêncio unívocos. Mas o ser unívoco diz-se de entes que não o são, a linguagem unívoca aplica-se a corpos que não o são, o silêncio «puro» rodeia palavras que não o são. Seria pois vã a procura da simplicidade de um círculo no eterno retorno, bem como a procura da convergência de séries em torno de um centro. Se círculo há, é o circulos vitiosus deus: aí, a diferença está no centro, e o circuito consiste na eterna passagem pelo meio das séries divergentes — circulo que é sempre descentrado por uma circunferência excêntrica. O eterno retorno é Coerência, mas é uma coerência que não deixa que subsista a minha, a do mundo e a de Deus. Também a repetição nietzschiana nada tem a ver com a kierkgaardiana, ou, mais geralmente, a repetição do eterno retorno nada tem a ver com a cristã. (…) Há uma diferença de natureza entre o que retorna «de uma vez por todas» e o que retorna para todas as vezes, uma infinidade de vezes. Do mesmo modo, o eterno retorno é o Todo, mas Todo que se diz dos membros disjuntivos ou das séries divergentes: não faz com que tudo retorne, faz com que nada retorne do que retorna uma só vez, nada retorne do que pretende recentrar o círculo, do que pretende tornar as séries convergentes, restaurar o eu, o mundo e Deus. Cristo não retornará no círculo de Diónisos, a ordem do anticristo afasta a outra. Tudo o que, fundado em Deus, faz da disjunção um uso negativo ou exclusivo, tudo isso é negado, tudo isso é excluído pelo eterno retorno. (...)
Gilles Deleuze, O Mistério de Ariana, Lisboa, Vega, 1996.
1 <:
«o nosso século será deleuziano».
Foucault
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