Erws
Ali, onde o espírito deixa de ser princípio, deixa igualmente de ser fim. Daí a conexão rigorosa entre o «pensamento» colectivo, sob todas as suas formas, e a perda de sentido, do respeito das almas. A alma é o ser humano considerado como tendo valor em si. Amar a alma de uma mulher, é não pensar nessa mulher em função do seu próprio prazer, etc. O amor já não sabe contemplar, quer possuir (desaparecimento do amor platónico).
É um erro desejar ser compreendido antes de se ser elucidado por si mesmo a seus próprios olhos. É procurar prazeres na amizade, e não méritos. É qualquer coisa de mais corruptor ainda do que o amor. Venderias a tua alma por amor.
Aprende a repelir a amizade, ou melhor, o sonho da amizade. Desejar a amizade é um grande erro. A amizade deve ser uma alegria gratuita como as que a arte ou a vida oferecem. É preciso recusá-la para se ser digno de a receber: ela é da categoria da graça («Meu Deus, afastai-vos de mim...»). É dessas coisas que são dadas por acréscimo. Toda a ilusão de amizade merece ser destruída. Não é por acaso que nunca foste amado... Desejar escapar à solidão é uma cobardia. A amizade não se procura, não se imagina, não se deseja; exercita-se (é uma virtude). Abolir toda esta margem de sentimento, impura e enevoada. Schluss!
Ou melhor (pois não é necessário desbastar-se a si mesmo rigorosamente), tudo o que, na amizade, não passe por alterações efectivas deve passar por pensamentos ponderados. É absolutamente inútil privar-se da virtude inspiradora da amizade. O que deve ser severamente proibido, é sonhar com os prazeres do sentimento. É corrupção. E é tão estúpido como sonhar com a música ou com a pintura. A amizade não se deixa afastar da realidade, tal como o belo. E o milagre consiste, simplesmente, no facto de que ela existe. Aos vinte e cinco anos é mais que tempo de acabar radicalmente com a adolescência...
Não te deixes prender por nenhum afecto. Preserva a tua solidão. No dia, se alguma vez ele chegar, em que o verdadeiro afecto te for dado, não haverá oposição entre a solidão interior e a amizade, pelo contrário. Será mesmo por esse sinal infalível que o reconhecerás. Os outros afectos devem ser severamente disciplinados.
As mesmas palavras (ex., um homem diz à sua mulher: amo-vos) podem ser vulgares e extraordinárias, segundo o modo como são pronunciadas. E este modo depende da profundidade da região do ser de onde procedem, sem que a vontade possa fazer algo contra isso. E, por meio de uma harmonia maravilhosa, vão tocar, naquele que escuta, a mesma região. Assim, aquele que escuta pode discernir, se tiver discernimento, o que valem aquelas palavras.
O favor é permitido precisamente porque constitui uma humilhação ainda maior do que a dor, uma prova ainda mais íntima e mais irrecusável de dependência. E o reconhecimento é prescrito por esta razão, porque é nele que reside a utilização que se faz do benefício recebido. Mas isto deve constituir uma dependência relativamente ao acaso e não a um ser humano específico. É por isso que o benfeitor tem a obrigação de ser completamente destituído de benefício. E o reconhecimento não deve, em nenhum grau, constituir um afecto porque é nisso que reside o reconhecimento dos cães.
O reconhecimento é, em primeiro lugar, o feito daquele que socorre, se o socorro for puro. É devido pelo socorrido apenas a título de reciprocidade.
Para experimentar uma gratidão pura (pondo de lado o caso da amizade), preciso de pensar que me tratam bem, não por piedade, ou por simpatia, ou por capricho, a título de favor ou privilégio, nem tão-pouco por efeito natural do temperamento, mas por desejo de fazer o que a justiça exige. Deste modo, aquele que me trata assim, deseja que todos aqueles que estão na minha situação sejam tratados assim por todos os que estão na dele.
Simone Weil, A Gravidade e a Graça, Lisboa, Relógio D'Água, 2004.
1 <:
Posso não dizer nada? Posso apenas sorrir?
Tudo faz sentido... tudo faz sentido de uma forma muito firme.
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