31 maio 2007
29 maio 2007
Erws
Ali, onde o espírito deixa de ser princípio, deixa igualmente de ser fim. Daí a conexão rigorosa entre o «pensamento» colectivo, sob todas as suas formas, e a perda de sentido, do respeito das almas. A alma é o ser humano considerado como tendo valor em si. Amar a alma de uma mulher, é não pensar nessa mulher em função do seu próprio prazer, etc. O amor já não sabe contemplar, quer possuir (desaparecimento do amor platónico).
É um erro desejar ser compreendido antes de se ser elucidado por si mesmo a seus próprios olhos. É procurar prazeres na amizade, e não méritos. É qualquer coisa de mais corruptor ainda do que o amor. Venderias a tua alma por amor.
Aprende a repelir a amizade, ou melhor, o sonho da amizade. Desejar a amizade é um grande erro. A amizade deve ser uma alegria gratuita como as que a arte ou a vida oferecem. É preciso recusá-la para se ser digno de a receber: ela é da categoria da graça («Meu Deus, afastai-vos de mim...»). É dessas coisas que são dadas por acréscimo. Toda a ilusão de amizade merece ser destruída. Não é por acaso que nunca foste amado... Desejar escapar à solidão é uma cobardia. A amizade não se procura, não se imagina, não se deseja; exercita-se (é uma virtude). Abolir toda esta margem de sentimento, impura e enevoada. Schluss!
Ou melhor (pois não é necessário desbastar-se a si mesmo rigorosamente), tudo o que, na amizade, não passe por alterações efectivas deve passar por pensamentos ponderados. É absolutamente inútil privar-se da virtude inspiradora da amizade. O que deve ser severamente proibido, é sonhar com os prazeres do sentimento. É corrupção. E é tão estúpido como sonhar com a música ou com a pintura. A amizade não se deixa afastar da realidade, tal como o belo. E o milagre consiste, simplesmente, no facto de que ela existe. Aos vinte e cinco anos é mais que tempo de acabar radicalmente com a adolescência...
Não te deixes prender por nenhum afecto. Preserva a tua solidão. No dia, se alguma vez ele chegar, em que o verdadeiro afecto te for dado, não haverá oposição entre a solidão interior e a amizade, pelo contrário. Será mesmo por esse sinal infalível que o reconhecerás. Os outros afectos devem ser severamente disciplinados.
As mesmas palavras (ex., um homem diz à sua mulher: amo-vos) podem ser vulgares e extraordinárias, segundo o modo como são pronunciadas. E este modo depende da profundidade da região do ser de onde procedem, sem que a vontade possa fazer algo contra isso. E, por meio de uma harmonia maravilhosa, vão tocar, naquele que escuta, a mesma região. Assim, aquele que escuta pode discernir, se tiver discernimento, o que valem aquelas palavras.
O favor é permitido precisamente porque constitui uma humilhação ainda maior do que a dor, uma prova ainda mais íntima e mais irrecusável de dependência. E o reconhecimento é prescrito por esta razão, porque é nele que reside a utilização que se faz do benefício recebido. Mas isto deve constituir uma dependência relativamente ao acaso e não a um ser humano específico. É por isso que o benfeitor tem a obrigação de ser completamente destituído de benefício. E o reconhecimento não deve, em nenhum grau, constituir um afecto porque é nisso que reside o reconhecimento dos cães.
O reconhecimento é, em primeiro lugar, o feito daquele que socorre, se o socorro for puro. É devido pelo socorrido apenas a título de reciprocidade.
Para experimentar uma gratidão pura (pondo de lado o caso da amizade), preciso de pensar que me tratam bem, não por piedade, ou por simpatia, ou por capricho, a título de favor ou privilégio, nem tão-pouco por efeito natural do temperamento, mas por desejo de fazer o que a justiça exige. Deste modo, aquele que me trata assim, deseja que todos aqueles que estão na minha situação sejam tratados assim por todos os que estão na dele.
Simone Weil, A Gravidade e a Graça, Lisboa, Relógio D'Água, 2004.
Cáucaso
Pequena Daneliade de Giya Kancheli pela Filarmónica
Nacional Russa conduzida por Vladimir Spivakov
Gruidae
2007
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é a Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
Alberto Caeiro, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001.
28 maio 2007
Philos
Mas será que se precisa mais de amigos nos momentos de felicidade ou nos momentos de infelicidade? Os Humanos procuram-nos em ambas as situações. Pois quando estão aflitos precisam de ajuda. Quando atravessam momentos felizes, contudo, precisam de amigos com quem partilhar a própria existência e a quem possam fazer bem. Na verdade, anseiam por fazer o bem. Ainda que seja mais necessário ter amigos nos momentos infelizes, razão pela qual são precisos amigos que nos possam ser de utilidade, é mais belo ter amigos nos momentos felizes, razão pela qual nesses momentos se procuram amigos que sejam excelentes. Escolher amigos excelentes a quem fazer bem e com quem se passar a vida é uma possibilidade mais autêntica. A simples presença dos amigos é doce tanto nos momentos felizes como nos momentos infelizes. Os que sofrem são aliviados pelos amigos com quem partilham a sua dor. Daí que também se possa levantar a questão se os amigos ajudam de algum modo como que a carregar o fardo a alguém ou então se a sua simples presença, por ser doce e compreensiva permite a partilha da dor e diminuem de facto o sofrimento. Se o alívio do sofrimento acontece por este motivo ou por algum outro qualquer, é uma questão que tem de ser deixada de lado. O que é facto é que o estado das coisas parece acontecer tal como foi descrito. A presença dos amigos parece, contudo, ter uma certa natureza mista. Ver simplesmente os amigos é doce, sobretudo quando se atravessa um momento infeliz, e parece ajudar a que não se fique deprimido (porque é próprio do amigo ser encorajador, quer pelo seu semblante, quer pela sua palavra, caso proceda com tacto. Ele conhece o carácter e a disposição do seu amigo, bem como tudo aquilo que lhe dá prazer e o faz sofrer). Por outro lado, dá pena perceber que um amigo sofre com as nossas infelicidades, porque toda a gente evita ser motivo de sofrimento para os seus amigos. É por esse motivo que os que têm uma natureza viril tomam precauções para que os amigos não fiquem a saber do seu próprio sofrimento, porque só alguém como uma natureza totalmente insensível à dor será capaz de suportar tornar-se na causa de sofrimento para alguém. Em geral não admitirá que ninguém se lamente consigo, porque ele próprio não é propenso a lamentar-se. Mas a natureza feminina e os homens efeminados gostam daqueles que com eles choram e, na verdade, gostam deles como amigos de verdade e partilham efectivamente da sua dor. Mas é evidente que, em todas as circunstâncias da vida, é quem tem uma natureza melhor quem deve ser imitado. Por outro lado, a presença dos amigos nos momentos felizes torna doces esses momentos passados com eles e permite-nos ter a consciência de que ficam felizes com as coisas boas que nos acontecem. Por esta razão parece que se deve chamar prontamente os amigos para partilharem connosco a nossa felicidade (é nobre fazer algo de bom), mas devemos hesitar em chamá-los para partilharem das nossas infelicidades. Pois devemos partilhar o mínimo possível de coisas más com os outros, daí que se diga «para infeliz já basto eu». Mas devemos sobretudo recorrer aos nossos amigos, quando, à custa de pouco trabalho, eles puderem dar-nos uma grande vantagem. Inversamente, contudo, será apropriado ir prontamente até junto dos que passam por momentos infelizes, mesmo sem ser-se chamado (é próprio do ser-se amigo o fazer bem a alguém e, sobretudo, aos que estão numa situação de necessidade, mesmo sem o terem pedido. É mais nobre e dá mais prazer para ambas as partes). A respeito dos que atravessam momentos felizes deve-se ir prontamente até junto deles enquanto se puder colaborar [na partilha desse bom momento] (também nestas circunstâncias há necessidade de amigos). Quando, contudo, em vista do mero benefício que se pode receber, devemos ir até eles mais lentamente, porque não é bonito estar sempre pronto para receber um benefício. Devemos evitar parecermos ser desagradáveis ao rejeitar [o convite para partilharmos das alegrias com os nossos amigos nos momentos felizes], o que acontece algumas vezes. Em todas as circunstâncias, portanto, deve escolher-se a presença dos nossos amigos.
Aristóteles, Ética a Nicómaco, trad. António Caeiro, Lisboa, Quetzal, 2004.
Andreia
Nenhum corpo é como esse, mergulhador, coroado
de puros volumes de água.
Nenhuma busca tão funda, a tal pressão,
como pesa na água uma ilha fria,
a raiz de uma ilha.
Uns procuram ramas de ouro.
Outros, filões de púrpura unindo
sono a sono. Há quem estenda os dedos para tocar
as queimaduras no escuro. Há quem seja
terrestre.
Tu esbracejas entre sal agudo.
Não falas, mal respiras, moves-te apenas
e fulguras
como uma estrela cheia de bolhas.
Feroz, paciente, arremetido, mortal, centrífugo.
Com todo o peso do coração no centro.
Herberto Helder, Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.
22 maio 2007
Viola
Concerto para Viola de Sofia Gubaidulina por Yuri Bashmet
acompanhado pela WDR Orquestra Sinfónica de Colónia
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21 maio 2007
Do lado de lá
Wilhelmshaven
Gerhard Richter, 1969.
Óleo sobre tela, 50 x 70 cm.
Museu do Chiado entre 29 de
Abril e 27 de Junho em 2004.
É noite. A noite é muito escura. Numa casa a um grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,
Em relação à distância onde estou só há aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?
É só ele que continua a existir.
Alberto Caeiro, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001.
20 maio 2007
Estese
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta é o movimento que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Alberto Caeiro, Poesia, Lisboa, Assísio & Alvim, 2001.
18 maio 2007
Selene
Suite Bergamasque nº3 - Clair de Lune de Debussy
por David Oistrakh acompanhado por Frida Bauer
17 maio 2007
Olhos ledos
Regaleira 2006
Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;
silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual,
sabei que, sem licença de meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão, saudades de meu bem.
Rimas de Luís de Camões
História e Antologia da Literatura Portuguesa sec.XVI, Lisboa, Gulbenkian, 2001.
15 maio 2007
Religio
Giorgio Agamben, Profanazioni, Roma, Nottetempo, 2005.
O termo religio não deriva, segundo uma etimologia tanto insipida quanto inexacta, de religare (aquilo que liga e une o humano ao divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção na qual devem prontificar-se as relações com o deus, a hesitação inquieta (o “reler”) defronte das formas — e das formulas — a observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homem e deus, mas o que vela a mantê-los distintos. À religião não se opõe, por isto, a incredulidade e a indiferença em respeito ao divino, mas a “negligência”, isto é, uma atitude livre e “distraida” — isto é, liberto da religio das normas — de fronte às coisas e aos seus usos, às formas da separação e aos seus significados. Profanar significa: abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação ou, melhor, dela faz um uso particular.
Tradução nossa.13 maio 2007
Sossego dos sons
Bernardo Soares, Livro do Desassossego Vol.II, Lisboa, Presença, 1991.
12 maio 2007
Imaginação e real
Com a imaginação arvorada ao vento das conversões dos paradigmas, é como no modo em que as ciências os afirmam desde Ptolemeu a Copérnico, a como o indivíduo se adequa à perantidade das suas possibilidades na evidência da necessidade, que o real se vai formando, pouco a pouco, sobre os hábitos que prevalecem numa sociedade humana de sobrevivência. A entropia própria à natureza da evolução determina o fluxo dos nexos entre as fixações das crenças práticas, e é nesse constante devir, conduzindo-se sobre imperativos dogmáticos, que a percepção da realidade se acrescenta, dado a dado, bolsa a bolsa, círculo a círculo, na fuga do vazio do sentido que a separação original provocou. A selecção natural opera nos interstícios que a diversidade das vontades vai abrindo, e assim tece desde o aparecimento da escrita, continuamente, um novo animal em padrões cada vez mais sofisticados. Os hábitos que nos dão acesso à instituição da humanitas, por via da imaginação enquanto os verifica e edifica de acordo com a contingência, são a própria fonte da segurança dos indivíduos ao navegar pela universalidade que a justiça da polis exige.
Conclusão de um texto sobre a causalidade em David Hume, 2005.
07 maio 2007
Mahakala
Quem percebe d'arte?
Partita nº2 em Ré menor de Bach por Joshua Bell
Excerto da Chaconne
BWV 1005
05 maio 2007
Sensação como ser
Sem Título
Rui Vasconcelos, 2001.
Encáustica sobre papel, 68,2 x 100,3 cm.
Fundação Luso Americana, Lisboa.
* José Gil consagra um capítulo aos processos pelos quais Pessoa extrai o percepto a partir das percepções vividas, nomeadamente na «Ode Marítima» (Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Ed. Relógio d'Água, cap. II)
Gilles Deleuze & Féliz Guattari, O que é a Filosofia, Lisboa, Presença, 1992.
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