Do bem viver
Postigo 2006
Durante o tempo em que nós não somos dominados pelas afecções que são contrárias à nossa natureza, durante esse mesmo tempo nós temos o poder de ordenar e encadear as afecções do nosso Corpo segundo a ordem relativa à inteligência.
(...) Portanto, o melhor que podemos fazer, enquanto não temos um conhecimento perfeito das nossas acções, é conceber uma correcta norma de viver, por outros termos, regras de vida precisas, e retê-las na memória e aplicá-las continuamente às coisas particulares que se apresentam frequentemente na vida, de maneira que a nossa imaginação seja profundamente afectada por elas e que elas nos estejam sempre presentes. Por exemplo, pusemos entre as normas da vida que o ódio deve ser vencido pelo amor, ou seja, pela generosidade e não ser pago com um ódio recíproco. Mas, para este preceito da Razão nos estar sempre presente ao espírito, quando for conveniente, devemos pensar e meditar frequentemente nas injúrias dos homens e de que maneira e por que via elas podem ser repelidas o melhor possível pela generosidade; assim, com efeito, nós juntaremos a imagem da injúria à imaginação desta regra, e estar-nos-á sempre presente ao espírito quando nos fizerem alguma injúria. Mas se nós tivermos também presente ao espírito o princípio da nossa verdadeira utilidade e ainda o do bem que resulta da mútua amizade e da sociedade comum e, além disso, que de uma norma de vida correcta provém o supremo contentamento da Alma e que os homens, como as outras coisas, agem por necessidade de natureza; então a injúria, ou seja, o ódio que dela costuma resultar, ocupará uma parte mínima da imaginação e será facilmente vencida; ou se a cólera, que costuma nascer das injustiças maiores, não é tão facilmente vencida, será, no entanto, vencida, embora não sem flutuação da Alma, num espaço de tempo muito menor do que se nós não tivéssemos assim premeditado estas coisas, como é evidente pelas proposições 61, 72 e 83 desta parte. Para nos desembaraçarmos do medo, devemos pensar da mesma maneira na força de alma; quer dizer, devemos enumerar e imaginar frequentemente os perigos ordinários da vida e a melhor maneira de os evitar superar pela presença de espírito e pela firmeza de alma. Mas deve notar-se que na ordem dos nossos pensamentos e imaginações devemos atender sempre àquilo que há de bom em cada coisa, a fim de sermos assim sempre determinados a agir pela afecção da alegria. (...)
1 Na medida em que a Alma conhece as coisas como necessárias, tem maior poder sobre as afecções, por outras palavras, sofre menos por parte delas.
2 As afecções que nascem da Razão ou são excitadas por ela, se se tem em consideração o tempo, são mais fortes que aquelas que se referem às coisas singulares, que nós contemplamos como ausentes.
3 Quanto maior é o número de causas simultâneas, pelas quais uma afecção é excitada, tanto maior ela é.
Proposição X, e excerto do seu escólio, da parte V
Bento de Espinosa, Ética, trad. António Simões, Lisboa, Relógio d'Água, 1992.
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