
Páscoa 2006
Planódia
   
  Dedico este texto a Pedro A.H. Paixão e Rui Moreira
  pela constante partilha na disposição ao encontro.
   
  Introdução
   
  Uma coisa é um texto para filósofos, outra coisa é um texto para toda a gente, e como este texto está aqui publicado para ser lido por toda a gente, pelo menos toda a gente que visita o Projecto 10,   a sua leitura tenta ser tão acessível quanto possa. No entanto,  algumas  ideias são tão difíceis de tornar acessíveis que o esforço  desta  escrita poderá resultar completamente chato. Sendo assim, e  porque é  necessário contemplar as duas abordagens, a mais simples e a  mais  complexa, resolvi dividir o assunto em duas partes. Começo pela  primeira  num tom coloquial e estilo mais narrativo, para depois me  concentrar  nas dificuldades filosóficas que pretendo focar no assunto  proposto.
   
  Antes de mais convido-vos a ler a apresentação do editor   que me convidou, é uma bela nota de esclarecimento: é importante   perceber que em ciências sociais, ou não há “ciências” ou não há   “sociais”, mas não é por isso que deixamos de lhes falar. Leiam! E a   filosofia não é nem ciência nem ciência social, esta última uma   contradição nos termos, mas ainda assim também não deixa de ser uma   disciplina científica com todos os rigores que têm quaisquer destas   disciplinas.
   
  Aproveito ainda para dizer que o título deste texto, transliteração do grego planvodia,   não se refere a uma paródia, embora todo o texto que se escreva não vá   muito além disso, e esclareço que se trata da mera colocação correcta  do  nosso lugar enquanto seres errantes. Do “errar é humano” deve ler-se   deambular, a natureza nómada da nossa condição na descoberta das  coisas.  Todos os Homens são seres errantes, que andam estrada fora, e o  que os  distingue entre si é o modo como o fazem.
   
  A Ciência e a Filosofia
   
  Desde   que me lembro de mim a maior parte das pessoas pergunta porque é que  há  uns quantos, muito poucos, que resolvem, ou resolveram dedicar-se a   pensar mais que a maioria, uma vez que o que eles fazem ou fizeram não   parece ser tão útil como é aquilo que outros, que pertencem a um grupo   maior, fazem como contribuição para a nossa compreensão do como é que  as  coisas funcionam e devem ser aplicadas. Para que serve perguntar  porquê  quando nos parece que o necessário é saber como?
   
  Para   que serve a filosofia quando temos a ciência? Ou melhor, o que é isso   de filosofia, não é uma disciplina obscura dos primórdios da ciência? —   Pausa para pensar com um dedo encostado ao queixo e um leve vocalizar   gutural — O que é que a filosofia ainda nos trás de novo para que a   ciência não tenha dado já resposta? A filosofia não serve para nada… É o   que provam as políticas que se têm vindo a propor na educação: uma   disciplina que deixou de fazer sentido e não tem qualquer utilidade   prática, nem para o conhecimento nem para a formação do indivíduo, senão   porque se proporia deixar de fazer parte do currículo geral? A   tendência é esquecer a natureza criadora dos conceitos porque eles já   estão todos postos e basta tratar da sua actuação, como se articulam e   aplicam, etc. O porquê não interessa, já não preciso saber o porquê das   coisas, isso ficou resolvido a partir do momento em que o marketing, a   publicidade e outras disciplinas semelhantes nos revelaram que afinal   quem cria conceitos não é a filosofia. Essa disciplina empoeirada, densa   e difícil que só dá acesso a alguns, e que implica anos e anos a fio  de  estudos, para perceber arduamente o que essas e outras disciplinas  nos  mostram ser tão simples e fácil de entender... Para quê, para quê   complicar o que é tão simples??? Não dá para perceber… Vejam mas é   televisão e dediquem-se à ciência que a filosofia é uma perda de tempo.
   
  Este   é o tom que nos rodeia desde Tales, o sábio de Mileto, quando a  escrava  Trácia o gozava por ter caído num buraco enquanto olhava para  as  estrelas. Ele não olhava para as estrelas, lia-as, e dessas leituras   chegou a tomar decisões com imenso resultado prático económico. Sim,   lucros financeiros, lucros na venda de um terreno seco e morto que tinha   comprado muito barato, quando soube pelas estrelas que iria ser   renovado com uma cheia. Trácia não sabia o que gozava. Mas podemos dizer   que este episódio antigo está no foro da ciência e não da filosofia, e   de certa forma não poderia pertencer à filosofia porque esta só nasce   mais tarde com o fim da época dos sábios. Costumamos dizer que  filosofia  é o amor pela sabedoria, mas essa noção está tão errada  quanto é errado  assumir que as palavras compostas a começar por filo são o amor do que quer que seja, ou então temos de tomar o amor como nos apresentou Platão no Fedro,   uma mania, uma entrega delirante. A filosofia é a entrega ao saber   sobre uma forma da loucura que afecta alguns até à alma, é o prendimento   obsessivo pela senda do saber, é o nobre entusiasmo de regressar à   sabedoria, é uma das formas mais altas da total abertura ao encontro.
   
  Mas   o episódio de Tales também não pertence à ciência, essa virá mais   tarde. Podemos dizer que é um episódio na história da filosofia, tanto   quanto apraz à tradição dizê-lo pré-socrático. Foram escassas as épocas   em que os filósofos eram verdadeiramente tidos em conta. Todos sabemos   que os cientistas são fundamentais para as nossas sociedades, mas, e os   filósofos, fazem alguma coisa de útil? Aparentemente não, embora se   acabe a perceber que sim. Mas, então o que é que a filosofia faz de   facto que a ciência não conhece? A resposta não é simples, pelo menos   não é tão simples como era quando Bertrand Russell a deu acerca d’O Valor da Filosofia enquanto um d’Os Problemas da Filosofia. Segundo o filósofo analítico inglês, (…) mal   se torna possível um conhecimento preciso naquilo que concerne a   determinado assunto, logo perde o nome de filosofia, para se tornar uma   ciência especial. (…) E assim nos mostra que enquanto a filosofia   vai descobrindo o porquê das coisas, as relega à ciência para lhes   descobrir o como. É a filosofia que perde sentido num objecto de estudo   que já conhece, e é desse conhecimento que nasce a ciência.
   
  O termo “ciência” é a versão latina para a grega epistéme,   raiz de onde vem a epistemologia, disciplina filosófica que trata das   ciências e do conhecimento científico, o discurso sobre as ciências. A epistéme   é um tipo de crença, uma crença verdadeira justificada, mas não deixa   de ser uma crença. Assenta obrigatoriamente em dogmas verificáveis que   podem variar consoante o surgimento de novos dados. A ciência, numa   direcção contrária à da filosofia, é a disciplina por excelência da   procura. A procura daqueles elementos que vão permitir provar e   demonstrar como é que o provável se torna verdadeiro. O cientista sabe   muito bem o que procura, o que não quer dizer que não encontre fora do   que procurava, e aí ganha um contorno mais aberto, próprio da filosofia.   Nada é absolutamente uma única coisa. A ciência, em última análise,  não  é tão diferente quanto isso de uma religião que se mantém aberta à   descoberta de um novo texto sagrado, mesmo que este contradiga o   anterior, embora lhe seja tão resistente que só aceita mudar os seus   dogmas depois de uma muito aturada verificação. Um pouco como acontece   na proliferação das diversas escolas do Budismo, a diferença é que este   assume e postula inteiramente a necessidade e importância da crença.
   
  A   filosofia, por sua vez, actua como pedra de toque na desambiguação   entre o que é caminho para a verdade e o que não passa de uma prisão   dogmática, libertando o conhecimento humano dos preconceitos que o levam   a seguir as fórmulas estabelecidas. Sempre que se levanta o véu de um   problema resolvido para encontrar outro, torna-se necessário regressar à   filosofia para esclarecer o âmbito de acção deste segundo. É aqui que   se percebe que a resposta de Russell tende a ser um pouco simplista, ou   desactualizada, até mesmo para a sua época. A física, cuja ciência se   podia dizer de facto scientia (conhecimento do certo),   em meados do séc. XX começou a assumir contornos muito menos definidos.   Com a introdução da mecânica quântica, o núcleo duro da ciência   inaugurou uma linha científica de possibilidades que têm vindo a   questionar tudo o que temos como certo nas leis da física. Hoje em dia   não é estranho ter um físico como um ser espiritual enigmático, cujas   respostas ao funcionamento da realidade física não cessam de nos trazer   espanto e perplexidades, algo que sempre foi muito mais comum na   filosofia.
   
  Segundo   a mecânica quântica, e isto tem vindo a exponenciar-se com a evolução   dos aceleradores de partículas, afinal não estamos num mundo de quatro   dimensões. Enquanto que a nossa percepção só conhece as quatro  dimensões  espácio-temporais, segundo os físicos proponentes da teoria  das  supercordas (superstring theory) a realidade tem de  ser  composta por inúmeras mais, para que a mecânica quântica se possa   compatibilizar com a teoria da relatividade de Einstein. Ambas estão   certas (são ciência) mas quando se juntam para criar uma teoria   unificadora, a Teoria de Tudo, TOE (theory of everything),   as suas verdades contradizem-se, obrigando à colocação de outras   dimensões. Chegam a ser propostas 22 dimensões extra, como é o caso das   resultantes na equação de Polyakov. Mas não ficamos por aqui, as   propostas estranhas são muitas mais, e é preciso estofo filosófico,   diria até religioso, para seguir a viagem da física nos dias de hoje.
   
  Com a evolução dos grandes aceleradores de partículas, como é o caso do já tão afamado LHC (Large Hadron Collider) do CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire, actualmente Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire),   parece possível estender as fronteiras além do imaginável, e o físico   começa a ter verdadeiramente uma atitude filosófica de encontro ao   desconhecido, ultrapassando a mera procura da ciência. Uma das propostas   que mais maravilha, é o facto das partículas constituintes da matéria,   os quarks, poderem precisar da nossa atenção para virem à existência,   postulando o que já se conhece no Budismo há milénios, que toda a   realidade é produzida pela imaginação e que sem nós, seres humanos, nada   existiria. Igualmente interessante é o que acontece quando se separam   duas partículas que sempre estiveram juntas, distanciando-as em muitos   quilómetros. Quando estas estão juntas é normal que a nossa acção sobre   elas produza em ambas o mesmo efeito, afinal estamos a agir sobre as   duas ao mesmo tempo com o mesmo princípio de acção, mas o inacreditável   acontece quando as separamos a uma distância que é incalculável à nossa   percepção sem recorrermos às unidades métricas. Separadas por milhares   de quilómetros, elas agem como se estivessem juntas. Quando se age  sobre  uma delas num lugar, no outro a que foi separada parece reagir   concomitantemente tal e qual como aquela sobre a qual se agiu. Mistérios   que ainda pouco nos atrevemos a formular como ciência, embora tenham   sido levantados pela disciplina que sempre foi o seu baluarte. A   tendência natural para o futuro, parece agora, é o regresso da ciência à   filosofia, não das disciplinas que nunca deixaram de lhe pertencer,   como é o caso da psicologia, essa nunca foi nem nunca será   verdadeiramente uma ciência, por mais ciência social que lhe queiramos   chamar, mas de ciências como a física, que se atrevem a romper as   barreiras para aventurar-se no mundo dos “porquês” quando os “comos” já   não satisfazem. Esta nova forma de ciência mais próxima de regresso à   filosofia, já se apresenta como consciente de que a verdade, enquanto a   procuramos, se poderá dar como resultado de uma nossa doação de  sentido.  Estamos quase a pôr em jogo a possibilidade de aceitar que  toda a  existência é produto da imaginação…
   
  A procura e o encontro
   
  Tanto   a filosofia como a ciência desejam a mesma coisa, a verdade, a grande   diferença entre elas está na sua metodologia. É a diferença entre as   noções de procura e de encontro no caminho para a verdade. No Siddhartha, Hermann Hesse diz que (…) Procurar significa ter um objectivo, mas encontrar significa ser livre, ser receptivo, não ter nenhuma meta (…).
   
  A   procura, que é no que consiste o método científico para a busca da   verdade, pressupõe uma rede de aplicação com a qual se pode averiguar o   que consideramos ser real, uma vez que a consciência das ilusões em que   vivemos nos leva a precisar uma confirmação válida do que parece   encontrar-se. Trata-se de uma linha orientadora que se dirige por um   sistema de adequação, a coincidência entre o supostamente encontrado e a   rede lógica de um sistema de procura, que leva à obtenção de respostas   num campo de probabilidades. O encontro, por outro lado, pressupõe o   despojamento dessa rede predefinida, logo, a sua verdade não se dá por   coincidência e sim por disponibilidade e abertura ao improvável. A   tessitura que está na base estruturante da procura acaba por limitar o   encontro nas possibilidades previstas por ela mesma. É certo que esse   tecido vai crescendo, adaptando-se à realidade que procura, sempre na   medida em que cauteriza os seus insucessos, mas nunca chega a avançar   além disso, está preso a si próprio.
   
  A   estrutura preconcebida que está na base da procura resulta numa   constante e ousada transgressão do dado real, uma vez que este não está   efectivamente disponível, porque a sua preconcepção impossibilita o   acesso à concepção própria das coisas por si mesmas. A nossa   constituição enquanto seres compreensivos leva-nos a interpretar a   realidade, revestindo todos os dados que nos chegam com a nossa doação   de sentido. As coisas são para nós o que nós esperamos que elas sejam, e   quando surge uma dificuldade compreensiva parece que nos é preferível   adaptar o objecto difícil ao nosso entendimento, que o nosso   entendimento ao objecto que não quer deixar-se conhecer. Fazemos isto   sempre que é necessário suprir a angústia das incertezas e inseguranças   que nos são colocadas pelo desconhecido, e isto ganha proporções   desmedidas quando nos colocamos no modo da procura em vez de nos   disponibilizarmos abertamente ao encontro. Esta insegurança provocada   pela resistência que o desconhecido impõe na formação de conhecimento,   leva-nos a ter para com os objectos do nosso contacto, um tipo de   entendimento que os coloca num nómos adequado, de modo a   dar à nossa relação com eles um sentido de coerência, para não  arriscar  cair na angústia em que uma possível falta de sentido nos  depõe. Nómos,  aqui, não só designa o uso ou o costume, a  tradição, lei ou regra, como  também significa o canto e a melodia que  unifica a continuidade das  percepções. A nossa compreensão da  realidade, ou melhor, a nossa versão  da realidade nunca chega a ser  certa e definitiva, tal como sugere a lei  fundamental do Budismo — a  lei da impermanência. Isto é incontornável,  mesmo que consigamos  compreender um dado problema num certo momento, as  coisas não se mantêm  as mesmas ad infinitum. O nosso  conhecimento é  limitado e a nossa capacidade de o formar é falível, por  isso é  inevitável que se formem compreensões ilusórias, e o modo que a   estrutura própria da procura tem para suprir o problema das nossas   ilusões, é articular um sistema de referências de modo a permitir uma   análise epistémica dos aparentes dados com que lidamos. 
   
  Numa   concepção ortopráxica da realidade, em que a prática certa tem mais   importância que a opinião certa, isto não acontece tanto desta forma, o   que não significa que a ortopraxia nos deixe completamente de fora dos   problemas da angústia, simplesmente acontece que na ortopraxia não há   lugar para pensar a insuficiência da crença. A dúvida não é um dos seus   dispositivos, ela pertence-nos enquanto demiurgos ortodoxos, que  achamos  que sabemos, que precisamos de saber, e é na dúvida que se  coloca a  resistência do desconhecido. Eis porque tantas pessoas se  devotam ao  culto das suas religiões, porque é na observação das  práticas que se  resolvem as dúvidas, é na fé que o religioso combate a  angústia. Pela  ordem de um conhecimento limitado a dúvida não tem  solução possível em  opiniões, e acaba sempre por vencer as crenças  verdadeiras justificadas.  É preciso abrir mais que isso. A fé é uma  solução possível, mas a fé  não nos fala da verdade das coisas, ela não  nos leva a um conhecimento  que procure ver-se livre da nossa doação de  sentido. Se as coisas têm o  seu ser próprio, o seu ser em si mesmas, e  pretendemos estar abertos a  encontrar mais do que procuramos, é preciso  ir além da fé. A fé é fé em  alguma coisa, implica abertura ao  desconhecido mas já está para lá da  abertura, no conforto de que as  coisas são de uma determinada maneira.  No entanto, o que me parece ser  muito interessante na fé para esta  investigação, é que uma fé  inabalável anula o desconhecido, porque se  temos fé num determinado  improvável não desconhecemos que possa  provar-se.
   
  Na   ortodoxia, a ordem da opinião certa, não chegamos a ter em  consideração  prática a lei da impermanência e vivemos o sofrimento  constante da  perda das nossas determinações de valor, sejam elas  exteriores ou  interiores à nossa relação corpórea e mental. Torna-se  para nós mais  importante toda a estrutura do passado que a abertura  para o caminho que  nos depõe sobre o futuro e permite verdadeiramente  encontrar. O facto  de termos necessidade da estruturação dessa rede  básica de confronto  leva-nos, pelo prendimento a ela, a ser incapazes  do verdadeiro  encontro: este, para dar-se, implica um tipo de abertura  que nos depõe  sobre um plano místico de incertezas. Enquanto quem  procura já sabe, até  certo ponto, o que pode ou vai encontrar, quem  encontra não sabe que o  procurava, e se sabia não pode saber que o que  tenha encontrado não é  mais que uma sua doação de sentido. Se  encontramos o que procurávamos, o  que encontrámos foi tingido pela  procura. Mas…, será mesmo possível  encontrar sem procurar?
   
  No   fundo, tanto aquele que encontra como aquele que procura, estão ambos   num mesmo sistema de procura, mas cada qual num ponto de vista muito   diverso quanto a este sistema. Ao dar-se início uma procura, a partir   duma estrutura prévia de encontros possíveis, limitam-se as   possibilidades futuras de um encontro não previsto, e o verdadeiro   encontro, ou encontro puro, fica adiado. Contudo a procura está sempre   presente, mas a procura que pode levar ao encontro acaba por não ser   propriamente uma procura no sentido em que a entendemos. Imagine-se um   corpo a partir do qual se exerce a procura, este corpo pode ser a dita   estrutura entretecida das nossas referências; se o atravessarmos ficamos   depostos no fim do percurso, repletos das suas determinações e a   estruturação coerente da sua forma dificilmente nos libertará para uma   compreensão que a exclua ou contorne, todavia, será ilusório pensar que o   podemos eliminar de todo da nossa constituição compreensiva, ele   pertence à nossa identidade intrínseca enquanto indivíduos no mundo.   Continuemos a imaginar o mesmo corpo, agora, em vez de o atravessarmos   observamo-lo de longe, no topo de um ponto de vista elevado, o de quem   pretende vir a encontrar algo que não tem de se adequar à estrutura do   corpo. Este corpo mantém-se presente mas subsumido numa abertura livre   das suas determinações, para isto é essencial manter a melhor e mais   desperta atenção à abertura, e assim torna-se possível o desvelar de uma   verdade que não se concebe pela adequação à tessitura das referências.   Esta dita procura terá, pela sua subsunção com a abertura para o   encontro, uma continuidade na concomitância do corpo atravessado com o   ponto de vista elevado. O corpo está presente, não há outra forma de   seguir uma prática senão de corpo presente, mas este não chega a tingir o   resultado da procura e o encontro pode dar-se tão puro e verdadeiro   quanto possível.
   
  Este   corpo de que falo pode ser o nosso próprio corpo, mas aqui,   independentemente do corpo ser ou não ser o nosso, interessa mais a sua   noção como meio, aquilo que está no entre que estabelece a distância   entre a colocação de um objectivo, pela procura, e uma suposta verdade   no fim alcançado do que ela procurava. Interessa-nos o entre, o metaxú,   o platónico meio entre o minimamente o maximamente cognoscível.  Digamos  que nestas duas abordagens ao corpo intermédio, ele tanto é  caminho  para si, para o objectivo que aponta, como é caminho em si, não   dependendo do que aponta no objectivo. O facto é que este corpo é  tanto  em si como para si e a nossa posição nele não deixa de oscilar  entre  ambas as formas subsumidas, e é aí que nos devemos manter, entre a   sístole e a diástole de um coração que não pára de bater. A verdade   interessa tanto menos quanto mais ela se apresenta como definitiva e   resolvida, porque é muito difícil (se não impossível) distinguir entre o   que é e o que parece ser, e ela não cessa de colocar-se renovada.
   
  Todavia,   pergunta o leitor deste texto, será possível o encontro de algo que  não  nos pertença já? Conseguimos vislumbrar uma verdade que esteja para   além de nós? A resposta, naturalmente, é não, mas não porque o  encontro  que resulta da abertura ao desconhecido não seja possível e  sim porque o  desconhecido não nos é inteiramente desconhecido. Podemos  falar de um  desconhecido inteiramente desconhecido de que nunca ousámos  sequer  especular? Digamos que há uma dimensão do desconhecido que  deriva da  ignorância e por isso é desconhecido, porque não o  conhecemos, mas isso  não quer dizer que a possibilidade do seu  conhecimento não seja  intrínseca à sua própria ignorância. O que não  podemos de facto conhecer  não chega a produzir ignorância, esta só  existe quando a gnose é  possível, e se gnose é possível basta  criarem-se as condições para a sua  formação que, mais cedo ou mais  tarde, ela acaba por surgir. Um assunto  por nós ignorado, por mais que  nos pertença em potência, é para nós um  total desconhecido que esconde a  possibilidade de se dar a conhecer, é  como se fosse algo de que não é  possível formar conhecimento. Mas isto  acontece exactamente porque,  para evitar a angústia da possível perda de  sentido do nosso ser no  mundo, temos um mecanismo de defesa que elimina  o conjunto das  possibilidades que estão fora do nosso alcance  perceptivo. A negação de  um princípio pressupõe à partida a presença  desse mesmo princípio que  se nega. Se podemos falar em desconhecimento é  porque o conhecimento é  possível, e por isso não está completamente  fora do nosso alcance. Tudo  depende do que temos por verdadeiro e de  como podemos chegar a  conhecer a verdade. E a verdade, é possível?  Existe verdade? Para esta  pergunta não temos resposta. Ou até temos mas  não é uma resposta  simples ou directa, ela remete de volta à ideia de  que se podemos  desconhecer algo então o seu conhecimento é possível. O  limite do nosso  conhecimento possível está na nossa própria imaginação. O  que eu não  posso mesmo conhecer nem sequer desconhecer posso.
   
  Como nos mostra Sócrates no Ménon   de Platão, todos temos o conhecimento da verdade em nós, até um  escravo  sem formação em geometria sabe como fazer demonstrações  geométricas,  caso lhe sejam pedidas de modo a que ele as descubra por  si próprio.  Sócrates leva-o a conseguir esse feito pela associação de  ideias que já  lhe pertencem. O escravo era ignorante da demonstração  geométrica, mas  tinha em si a possibilidade desse conhecimento, bastou  levá-lo a  perceber isso mesmo. Esta é uma das formas que Platão usa  para provar a  proto-existência do mundo das ideias. Mas mais  impressionante que isso é  o próprio significado do termo grego para a  verdade, tal como o podemos  encontrar no poema de Parménides. A alétheia  é um  não-esquecimento. Lethe é um dos cinco rios do submundo na  mitologia  grega antiga, aquele de onde as sombras bebem para apagar as  suas  memórias e assim poderem reencarnar. Lethe é o esquecimento. Tendo   regressado à vida, os sujeitos deste esquecimento imposto pelo rio,  têm a  possibilidade de recuperar o que conheciam através da progressiva   eliminação desse mesmo esquecimento.
   
  A   verdade é um desvelamento, o retirar do véu que impede que ela se dê a   conhecer ocultando-a. Mas esta desocultação não tem a ver com o que   temos de determinado no mundo. É inadequado imaginar que se possa   alcançar a verdade por via de uma procura que se arrogue a encontrá-la,   partindo do seu próprio suposto pela adequação a uma tessitura de   referências. Assim, uma procura que não passe por esse sistema   desmistificante pode chegar a atingir o encontro por um desvelamento,   tal como se dá uma revelação, como numa epifania. Eureca!!!   É a própria disponibilidade atenta à abertura para o encontro, livre  de  uma doação de sentido que se possa reconhecer como intencional, sem   qualquer interpretação prévia, é ela que nos pode dar esta clareira.   Clareira que surge no meio da floresta porque existe uma floresta e é   preciso caminhá-la com atenção a esta lucidez, sem nos concentrarmos na   dogmaticidade dos diversos caminhos. É nesta abertura à luz das   possibilidades que não estão determinadas por uma ciência rectificadora,   que podemos compreender a noção do encontro, livre da tensão da  procura  que acaba por ocultar a possibilidade do mistério, tão  importante no  acesso ao desconhecido. O mistério, aqui, está no  delimitar com máximo  rigor o indelimitável, como quem vive realmente  atento à prática da  vida, enquanto esta é vivida, e pretende viver  melhor sem que isso  implique uma sua suposta forma verdadeira. Isto  porque a verdade, para  não ser um conceito vazio, precisa de manter-se  neste lugar da abertura  ao encontro das possibilidades não realizadas. A  verdadeira verdade  encontra-se na abertura à potência. Percebida a  possibilidade do  encontro na alteridade aparentemente inacessível, só  nos falta uma  prática constante do ser-se aberto e do estar-se na  abertura.
   
  
  Sara Constança, Novembro 2010