Que o amigo seja para vós a festa da terra

23 julho 2007

Fingindo conhecer













Pois bem, vamos a ver se consigo exprimir com mais clareza o meu pensamento. Digo que há duas realidades diferentes a que correspondem duas artes: à arte que se refere à alma chamo política; à que se refere ao corpo não posso atribuir uma designação só, mas, embora a cultura do corpo constitua uma unidade, distingo nela duas partes, a ginástica e a medicina. O que na política corresponde à ginástica é a legislação, o que nela corresponde à medicina é a justiça. Há, portanto, dois grupos de artes que se definem pelo seu objecto, de um lado a medicina e a ginástica, do outro a justiça e a legislação. Mas os elementos de cada grupo acusam também diferenças entre si.
Da existência destas quatro artes, que visam o maior bem do corpo ou da alma, se apercebeu a adulação, não por meio de um conhecimento raciocinado, mas por via da conjectura, e, dividindo-se então em quatro partes e insinuando cada uma delas sob a arte correspondente, fez-se passar pela arte cujo disfarce adoptou. Não tem o mínimo interesse em procurar o que seja o melhor, mas, sempre por intermédio do prazer, persegue e ludibria os insensatos, que convence do seu altíssimo valor. É assim que a cozinha toma a aparência da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que, se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, médico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer à fome.
A isto chamo eu adulação, que considero uma coisa vergonhosa, Polo (é a ti que neste momento me dirijo), porque visa o agradável sem a preocupação do melhor. E sustento que ela não é uma arte, mas uma actividade empírica, porque não tem na sua base um princípio racional que permita justificar as várias formas do seu procedimento no que respeita à natureza e às suas causas. Ora, eu não chamo arte a uma actividade que não esteja fundada na razão. Se tens algo a objectar ao que afirmo, estou pronto a fornecer explicações suplementares.
Portanto, repito, a cozinha é a adulação disfarçada de medicina. Da mesma maneira, à ginástica corresponde a toilette, prática malfazeja e enganadora, vil e indigna de um homem livre, que ilude com aparências, cores, cuidados da pele e do vestuário, a tal ponto que, interessadas em exibir uma beleza artificial, as pessoas descuram a beleza natural, proporcionada pela ginástica.
Resumindo, dir-te-ei, em linguagem matemática (talvez assim me compreendas melhor), que a toilette está para a ginástica como a sofistica está para a legislação, e a cozinha para a medicina como a retórica para a justiça. Estas actividades, já o disse, distinguem-se pela sua natureza. Dada, porém, a estreita relação que existe entre elas, sofistas e oradores confundem-se, ao realizar o seu trabalho no mesmo domínio, sobre os mesmos assuntos, sem conhecerem exactamente a natureza das suas funções e com idêntica ignorância a seu respeito por parte dos outros homens. Efectivamente, se, em vez de ser a alma a comandar o corpo, fosse este a comandar-se a si próprio; se a alma não submetesse a realidade à sua apreciação, distinguindo a cozinha da medicina, e fosse o corpo a fazer essa distinção, com base apenas no critério do prazer que retira destas coisas, então, meu caro Polo, teriam aqui inteira aplicação aquelas palavras de Anaxágoras que tu conheces muito bem: «Todas as coisas se misturariam e confundiriam», e a medicina e a saúde não se distinguiriam da cozinha.
Sabes agora o que entendo por retórica: ela é em elação à alma aquilo que a cozinha é em relação ao corpo. Foi talvez um procedimento estranho o meu, de te proibir os longos discursos para depois me espraiar tão longamente, mas tenho para isto uma desculpa: enquanto te falei concisamente, não me entendeste bem nem foste capaz de aproveitar nada das respostas que te dei; estavas sempre a pedir explicações. Se, pela minha parte, as tuas respostas também me parecerem insuficientes, alarga também tu o teu discurso; caso contrário, deixa as coisas como estiverem, que assim é que é bom. E agora vê se te satisfaz a minha resposta.

Platão, Górgeas, trad. Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 1997.

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