Que o amigo seja para vós a festa da terra

05 maio 2007

Sensação como ser

















Sem Título
Rui Vasconcelos, 2001.
Encáustica sobre papel, 68,2 x 100,3 cm.
Fundação Luso Americana, Lisboa.



O objectivo da arte, com os meios do material, é o de arrancar o percepto às percepções de objecto e aos estados de um sujeito de percepção, o de arrancar o afecto às afecções como passagem de um estado a outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensação. Para isso é preciso um método, que varia com cada autor e que faz parte da obra: basta comparar Proust e Pessoa, no qual a procura da sensação como ser inventa processos diferentes*. Os escritores, quanto a isto, não estão numa situação diferente da dos pintores, músicos, arquitectos. O material particular dos escritores são as palavras, e a sintaxe, a sintaxe criada que emerge irresistivelmente na sua obra e passa na sensação. Para sair das percepções vividas, não basta evidentemente a memória que convoca apenas antigas percepções, nem a memória involuntária que acrescenta a reminiscência como factor que conserva o presente. A memória intervém pouco na arte (mesmo, e sobretudo, em Proust). É verdade que toda a obra de arte é um monumento, mas o monumento não é aqui o que comemora o passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si próprias a sua conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra. O acto do monumento não é a memória, mas a efabulação. Não se escreve com recordações de infância, mas por meio de blocos de infância que são formas de devir-criança do presente. A música está cheia delas. O que é necessário não é a memória, mas um material complexo que não se encontra na memória, mas nas palavras, nos sons: «Memória, odeio-te.» Só se chega ao percepto ou afecto como a seres autónomos e suficientes que não devem nada àqueles que os experimentam ou experimentaram: Combray tal como foi vivido, não o é nem nunca o será, Combray como catedral ou monumento.

* José Gil consagra um capítulo aos processos pelos quais Pessoa extrai o percepto a partir das percepções vividas, nomeadamente na «Ode Marítima» (Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Ed. Relógio d'Água, cap. II)


Gilles Deleuze & Féliz Guattari, O que é a Filosofia, Lisboa, Presença, 1992.

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